Ondjaki
Deslembramentos
a serena diagonal
na coloquial eloquência, o reavivar das coisas da língua. o discreto gozo. a silenciosa, suave, revelação
27ago2024 | Edição #85qual lua lunar,
margem da maré
maresia — que deitada.
o osso fresco. a frescura dorsal.
uma manta de areia
sobre o corpo em concha.
sua, sua a lua.
— sonha breve…, mas com força (…)!
“as portas e o medo de mim”,
K. L. Nahary
fica perto desse instante que antigamente descreviam como “adormecer em busca da diagonal ideal”. não era trilha, ou solução: era descoberta.
havia quem fizesse a prática de modo incerto, fugaz, porém transpirando uma coesão conseguida com fluente naturalidade. não havia o assombro do esforço, nem o derrame do exageramento. era tudo mais perto do impecável, não necessariamente da exactidão.
*
a coisa vinha, então, de antesmente.
como diria o Barros-mais-velho: era uma pré-coisa. não de ter sido à nascença. pode ser que por aquisição e ajuste. mas algo havia de semente que se há de submeter ao sol. um fazer que lembrava o odor do talento: uma espécie de nítido pressentimento vago.
um fazer que lembrava o odor do talento: uma espécie de nítido pressentimento vago
e que quando lido, parecesse fluir não como uma nuvem que chegasse, mas como lugar natural de sentir: seja palavra. seja estória. poema arreliado; poema à prova de som. na coloquial eloquência, o reavivar das coisas da língua. o mexe-como-quem-não-mexeu. o discreto gozo. o olho em outros olhos. os olhos nos olhos do medo. a silenciosa, suave, revelação. e a pequena surpresa de ainda ser possível surpreender-se: uma secreta celebração.
*
esses instantes acontecem. avizinham-se entre si em momentos que a mim não coube a sorte de saber d’escrevê-los. por isso murmuro: pressentimento: o que quase não fizémos, mas acabámos por sentir e aceitar fazer; o que sempre falhará ao explicamento.
a intraduzível sensação de magia menor, kapequena1: mistério e ilusionismo — nas flores da pele.
*
e isto era o que para hoje eu podia trazer;
a celebração primitiva da palavra que se move por linha enviesada do afecto em curva de cair livre num som que é mais
do sonho que do significado
embora (que) em celebração se possa tropeçar em palavras como lua e laço, lágrima-lembra-lamento
ou loengo2
em margem de fogo posto.
ps: “todo es palabra; todo es fiesta — todo esto es cariño”
Cmda. prof. Ángel, Luanda, 1988
1 muito pequenina
2 fruto arroxeado muito saboroso
Matéria publicada na edição impressa #85 em setembro de 2024.
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