Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Visitas inesperadas

Na raiz da noção de hospitalidade reside a esperança de que somos capazes de matar a sede ao forasteiro sem saber quem é ou de onde veio

01set2020 | Edição #37 set.2020

Os fantasmas pedem-nos que os embalemos e adormeçamos. Querem que sejamos para eles dois braços e um colo quente, que os ponhamos a dormir e não abandonemos o quarto. São eles que nos ensinam a embalá-los, como se o seu corpo fosse um corpo nosso destinado por eles para que se cumpra neste mundo o seu sono. De ano para ano, vou pressentindo um espírito das palavras: elas guiam-nos e revelam-se como as flores se abrem, revelando os sons que escondem, as suas discretíssimas afinidades umas com as outras, que a mecânica das frases faz eclodir.

Escrever exalta-me e mete-me medo, medo às palavras, medo de lhes mexer como se tem medo de aranhas, ou do fogo. Mas quanto mais medo lhes tenho, quanto mais, abeirando-me delas, me sinto a beirar um outro lado, mais a paz que advém quando as toco me transporta e me conduz a um consolo que nada mais provoca. Tenho medo que me piquem, as palavras, que me cortem, mas quanto mais perto dos cortes, das picadas, de me molestarem, mais me embalam, consolo tido apenas quando a minha avó morta vinha rezar o Pai-Nosso comigo antes de eu adormecer. Sonhei que chovia na minha sala, porque a janela ficara aberta e uma nuvem chuvosa entrara. Os fantasmas pedem-me embalo e deito-me a seu lado. Não me querem assombrar nem meter medo, mas partilhar do meu sono.

Saberemos quem bate à nossa porta? A estranha lupa, estranha lente cavada na madeira, nada revela sobre as visitas que não aguardamos. “Estás à espera de alguém?” E se, em vez de alguém que conhecemos, for esse espírito que ali aparece, em blusão de cabedal, roto, mulato, esfomeado? Se for ele que nos implora que o deixemos entrar e a ele que negamos guarida e um copo de água? Sabemos lá com quem nos cruzamos, a quem damos passagem, se não uma alma penada, um salvador, cruzando a passadeira, o diabo que passeia o seu rafeiro pelo nosso bairro. Saberemos lá, como não sabemos se o diabo vai nas vírgulas ou anda montado nos travessões, se Deus são os pontos dos is ou as cedilhas.

A nuvem está no centro da sala, ainda que eu não a tenha visto entrar. A atmosfera tornou-se húmida, mas não está frio. Sentados, vemos chover sobre o tapete, mas a chuva não nos atinge, nem lhe ligamos muito. Conversamos como se não fosse nada. A televisão está ligada. Ao fundo do corredor, a máquina de lavar roupa trabalha. Espanta que a nuvem não nos assuste, mas não assusta. É um pulmão vibrante, que ali encontrou abrigo. O aguaceiro cai, e conversamos, bebericamos água fresca, mudamos de canal, rimo-nos. A nuvem chove, como se participasse da nossa conversa.

O forasteiro

Na raiz da noção de hospitalidade reside a esperança de que somos capazes de estender a mão sem fazer perguntas, matar a fome e a sede ao forasteiro, sem saber quem ele é ou de onde veio. 

No polo oposto, o estalajadeiro não abre a porta e aflige-se com a presença dos estranhos, que a podem arrombar e arrombar o seu mundo. Nunca saberemos quem é esse estranho que chega de noite e nos pede abrigo. O forasteiro é qualquer um dos nossos, abrigados no nosso abrigo, e que também desconhecemos.

Num quadro de David Ryckaert 3º, O pátio da estalagem de Emaús, o estalajadeiro descansa nas traseiras da estalagem, em Emaús, sem perceber que, em plano recuado, lhe bateram à porta. O quadro cativa pelo modo como o homem em primeiro plano desconhece ainda que foi visitado e quem é o visitante. 

Olhando-o, vejo-me estalajadeira, distraída na minha sesta, quando o espírito me bate à porta, e questiono-me se não será sempre assim. Se a chegada do forasteiro não carece sempre da nossa distração, como se essa chegada fosse sempre imprevisível e a nossa distração necessária àquilo que confere benefício à sua visita. 

Talvez os milagres tenham de nos apanhar sempre desprevenidos, ou não seriam milagres. Não me refiro à complexa rede de desequilíbrios implicada no modo como acolhemos ou não as visitas inesperadas, mas, antes, a outra pergunta: se, ao julgarmos repelir o forasteiro, não repelimos, antes, a nossa salvação, a nossa natureza, e se tal não descreve apenas a condição distraída dos milagres e a nossa distracção essencial perante a visita do assombro.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.