Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Inverno para sempre

Livro apresenta registros de fotógrafo britânico pelas margens de um rio e de seus afluentes ao longo da estação mais fria

01nov2020 | Edição #39 nov.2020

As margens estrangulam o caudal do rio Exe, em Devon, Inglaterra, em novembro. A folhagem é amarela e lima. A água está escondida sob as folhas secas, que a tapam, entre os tufos verde-vivos dos fetos que assentam as raízes na superfície. É a confluência de dois ribeiros, Stoke Woods. Não há vento, mas não porque a fotografia interrompe o vento ou o fixa, mas porque não havia vento naquele 31 de outubro de 2010, quando Jem Southam sujou as botas na lama para apanhar o começo do inverno visto das margens. Ramos de árvores pendem sobre as águas como cabelos molhados. 

Os segredos que o rio esconde estão submersos na tinta verde do seu caudal quase parado. A fotografia parou a corrente tal como, por uma fracção de segundo, fixou novembro. Os galhos e as folhas das árvores, a névoa à superfície da água, cada uma das formas de vida enterradas na terra, as gotículas de humidade em redor do chorão, a resina no tronco dos pinheiros — tudo congelado, novembro para sempre. “Estas fotografias acompanham a passagem de um único inverno 2010-2011 ao longo do rio Exe e dos seus afluentes, na Inglaterra”, lê-se na abertura de The River: Winter, de Jem Southam. 

Logo, novembro, fotografia como cubo de gelo com árvores dentro. O rio, calado, espelho dos ramos sobre as águas, folhagem acastanhada, outonal, 22 de novembro de 2010. Galhos que são como fronteiras em um mapa, bordado de folhas amarelas, ou, em Bickleigh, no mesmo dia, uma confusão de troncos como um braço erguido diante da lente, sobre o rio.

A senhora recebe-me ainda de pijama, a pele à volta do pescoço é fina e enrugada, a casa cheira a papas de aveia, botija de gás à beira do fim e remorsos. Há pouca luz, só um pontilhado de raios através das persianas corridas contra as folhas da avenca à janela. É a sétima planta que me oferece. Desencanta-a da prateleira mais baixa da varanda. Estende-me dois candelabros do seu enxoval e parte da colecção ilustrada de um jornal, que “é capaz de interessar para colagens”.

Rio Creedy, em Sweetham, 4 de dezembro de 2010. A água é da cor das margens, cinzento-terra. O canal de lodo se esfuma no horizonte, as folhas amarelas caíram dos ramos e o rio as levou. Nas imagens seguintes, cheira a cinza, ainda que não tivesse havido um incêndio. É só a cor de dezembro nas margens: uma cama malfeita de folhas secas, quase cor de carvão, o rio tom de grafite, o céu branco. Em Whiptail Wood, a 11 de dezembro, a água desapareceu das imagens. O caudal está coberto de folhas, só sabemos que a água subjaz à imagem porque nos é dito ser um afluente. A composição revela somente os galhos nus, os ramos tombados pelo vento, a manta de pequenas folhas verdes.

Os estágios da água

As deambulações de Jem Southam pelas margens do rio Exe e seus afluentes acompanham a sucessão de banhos de impressão da fotografia: diferentes estágios da água, da sujidade ao gelo, sucessivos modos de fixação, as alterações que o avanço do inverno imprime na superfície da água, modificando o modo como esta reflecte a transfiguração das margens, como em Taddiforde Brook, em Exeter, a 20 de dezembro de 2010: imagem a que se calou todo o som, salvo a sugestão dos passos do fotógrafo na neve — só uma renda de flocos de neve suspensos das folhas de uma árvore, neve no chão, um estreito caudal de gelo negro correndo entre as duas margens brancas. No mesmo lugar, sem ninguém: dois lagos, separados por um caminho de gelo, preto e branco onde antes havia lodo e interrogação: o rio e as suas margens expondo as variedades da película fotográfica como meios de mimetizar o efeito da passagem das estações no planeta que habitamos.

Talvez a senhora tenha sido uma mulher bonita. Tem os lábios enrugados de ansiedade e um receio hesitante e delicado no olhar, de quem teme não ir a tempo de se redimir ou não saber bem o que é isso, como se faz, como se pede desculpa, como se busca o perdão.

Queria escrever um livro de fantasmas, mas por vezes não sei onde procurá-los. São meia frase, apenas um sufixo, o chiado de uma porta, a sobreposição da música em dois rádios ligados em duas salas.

Cheira a brasas. Ouve-se um helicóptero. Os passos do cão, que fareja as paredes da varanda. Sons indistintos, logo com contorno: uma mota arranca, a língua do cão lambe-me a mão, ele franze os olhos por causa da luz. Conversas ao fundo. Bate uma porta. Um cão ladra. Passos. As brasas crepitam. Cheira a sol e carvão aceso. O helicóptero ronda o rio, voando baixo. O cão cheira o ar, parece cheirar a luz, boceja. Eleva o focinho e cheira o sol até que se deita.

São Martinho de Porres atravessava as paredes da enfermaria em socorro dos doentes. A que cheirará o sol? Chaves tilintam nas mãos de alguém. Ao longe, uma confusão de pássaros nas copas das árvores da avenida. A caneta faz sombra na página como um ponteiro em um relógio de sol. Uma grua movimenta-se sobre um edifício no sentido dos ponteiros do relógio, paralela à rua, suspensa de um prédio, a noventa graus. O cão, ao fundo, ladra. Três antenas de televisão espreitam cada uma para seu lado. Uma mota acelera na via rápida. Rumor de trânsito. Ondas na praia. 

O santo caminhava como um rio, rua fora. O fotógrafo apanhou-o em um ermo entre casas, para lá de uma cerca, camuflado na grama alta. Veste uma gabardine preta e um chapéu de cowboy, a camisa de flanela apertada até o colarinho, cara quase tão escura como o chapéu e botas de couro. O marido da senhora está de pijama. Pela mão, o santo traz um carrinho de bebé vazio. Conta-se que aprendeu a curar doentes com um cirurgião barbeiro. Que tinha queda para animais, que conversava com eles e que se entendiam. E que atravessava portas fechadas, entrando em enfermarias para aliviar doentes acamados.

As variedades da película fotográfica mimetizam o efeito da passagem das estações

O fotógrafo fixou o rio em março, quando o gelo já derretera. Fotografou o rio em fevereiro enquanto o gelo derretia. Diante de mim, as primeiras fracturas no gelo, provocadas pela subida da temperatura. As margens engrinaldam o rio em março. São mínimos brilhantes, orvalho enfeitando os ramos, folhinhas novas, verde-limão, sorrindo à brisa que sacode os ramos.

Martinho no instante em que atravessa a porta da enfermaria. E pouco mais. Se me esforço, fechando os olhos, vejo do lado de lá da porta: camas, entre névoa e nada, uma escuridão cor de mogno, linho e sangue seco. O cão se levantou. Rebentação e uma mãe a gritar ao filho: “Espera!”. Passarinhos e uma mosca. Chaves no bolso e passos na calçada. O cão ri para o céu, para a luz, e lambe a barriga. O que me dará a cidade a seguir? Talheres e copos. Uma abelha. O cão estacou, de pé. Olha para mim antes de ir para dentro. Cá fora é verão. Lá dentro é inverno.

Os sons adormecem e, quando acordam, fazem-no ao mesmo tempo. Se uma pessoa fala, falam muitas; se um cão ladra, uma mota trava; se a mãe fala, o mar bate no forte. O cão roda sobre si mesmo, a grua se movimenta, o cão se deita. Os sons, tais como o vento, erguem-se sobre o casario por ondas, por espasmos ou por pulsações. A cidade enche e esvazia, um harmónio humano, um coração, o arfar do cão, o ladrar da cadela, as chaves no bolso, a gaivota no telhado, a conversa dos velhos à porta de casa, abelhas, martelos pneumáticos, carros na estrada, moscas, um rumor do mar, da sua presença. Alguém sacode um tapete. Cá fora, não sou fantasma.

As brasas já acenderam. Cheira a peixe na brasa. Um estore abriu. Passos no beco. De novo, a cidade dilatada. O som suspenso. E, logo, uma buzina, uma porta a bater, pratos numa lava-louças, o ladrar de um cão, vento nas folhas, sinos a darem a meia hora. Espero à varanda pelo texto das coisas. Obras ao longe. Passos, o correr de um estendal da roupa. Uma porta chia, o cão levanta a cabeça. Tosse-se ao longe. “Até logo”, diz uma mulher. A roda de uma bicicleta no asfalto. O cão ladra. A roda da bicicleta trava. O cão dorme, aos meus pés.

Cheira a primavera em Silverton Mill, 19 de fevereiro de 2011, às margens do rio Culm. Eis que das ramagens rebentam florinhas brancas. Sob as águas, o nevoeiro embacia o espelho, mas as imagens têm cheiro de abelhas: rosa-pálido onde fora terra, amarelo-mel e azul-água onde fora preto e branco, céu onde fora inverno, sol e som atrás dos ramos onde só havia silêncio e gelo. Supomos o fotógrafo não só no bosque, entre as árvores, mas acompanhado. Talvez seja a ilusão conseguida por Southam de que, se dentro do inverno nem ele estava nos lugares que fotografou, agora, na primavera, levou a família com ele para verem as primeiras folhas, as primeiras flores.

É uma senhora que nunca deu nada a ninguém. A caminho da morte, enche-me de prendas, mesmo se não a visito ou se a visito pouco. Busca redimir-se nos pequenos gestos: cada planta que oferece, cada fascículo da colecção do periódico. Atira-se à redenção tão afoita que nem dá tempo de as plantas ganharem raiz antes de as plantar, e elas não medram.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #39 nov.2020 em outubro de 2020.