Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Da janela

Será a eternidade um caudal de domingos? Não foi sempre assim, mas já não me lembro de como costumava ser

01jun2020 | Edição #34 jun.2020

Da janela, quarta-feira feriado, acompanho o percurso da cadela velha do bairro, uma labrador de oitenta anos humanos. Dá a volta ao relvado, tomando sempre o caminho mais longo. Na relva, para e rebola-se, coçando-se, de barriga para o ar. Nunca se sabe a quem dará cavaco. Em princípio, aproxima-se de toda a gente, desde que lhe pareça que comem alguma coisa, e não chega a ter medo de ninguém. Se algum cão se aproxima, cheira-o e desinteressa-se. Ou, sem que se perceba o porquê, roça o nariz no dele e dá-lhe as costas. Por vezes, a meio do caminho, junto ao caixote do lixo, come com vontade de uma fralda suja. 

Às vezes caça um pardal ou experimenta um sapo, mergulhando de rompante no pequeno lago onde um canavial jovem vem ganhando respeitabilidade. Mas nesse passear-se tem toda a sabedoria que não temos, e busca unicamente o prazer. Em duas horas de uma manhã, todo santo dia, nasce, vive e morre, enfim, à porta do café, onde aterra de cansaço junto ao anúncio dos gelados: cada passeio é uma vida com direito a surpresas, reveses, traições e gozo. E tudo recomeça na manhã seguinte, porque a seguir à vida não vem senão tudo de novo: a surpresa toda, a mesma deliciosa rotina. Tudo pode esperar do lado de cá da janela, atrás de persianas semifechadas: a louça por lavar, a roupa por passar, todo o cotão e ninharias de que costumo ocupar-me. Às vezes, se estou acompanhada, convido a companhia a gozar comigo o filme da cadela pela relva, plena de si e de seu rumo. 

Mas aquilo de que mais gosto é quando a perco de vista pois caminhou pata ante pata, pressa nenhuma, para trás de um prédio, e sei (pois já o vi) que iniciou o peditório por pão velho que algumas senhoras, sempre as mesmas, lhe atiram. Avisa que ali está, ladrando de baixo, e lá cai o pão do dia. É o que aprendeu: que se cantar um pouco há-de ser alimentada. O peditório dura muito mais do que seu estômago precisa: gula e luxúria, pão bolorento, ossos de frango. Seu ladrar às janelas é o único ruído do passeio que, de outro modo, se faz em silêncio. Porém, esforçando-me, ouço a gargalhada contínua que solta pelo caminho — uma gargalhada é a única sombra que vale a pena ter. Quando a noite cai e o dono do café recolhe com a velha Fusca à sua casa, paira no ar seu riso quebrado, o único fim em si do bairro. 

A nova música

Deito-me a meio da tarde para esquecer o domingo. O quarto está quente: o sol aquece a janela. Da rua, sobe a nova música do domingo: desde que o bairro albergou os fugitivos da capital gentrificada, as crianças brincam no asfalto. Seus risos são finos como um violino arranhado por um menino. Correm, derrapam, exibem-se, atiram a bola à cadela. Uma voz de homem chama, anda cá, Matilde, Tomás, não te afastes. As mães conversam, encostadas ao loendro, e dão gargalhadas. Estão a tornar-se amigas. 
São pequenas bicicletas com rodinhas, que deixam marcas na estrada, roçando os automóveis, trotinetas, skates, os risos e o vento nas folhas, que nos enlouquece mais ao domingo, quando a temperatura sobe e a brisa invisível anima as folhas dos choupos brancos. É uma canção medonha, bela e fatal, de começos e mistério, a música de tudo quanto não são meus domingos sem crianças nem responsabilidade, dia perfeito para um remédio santo. Mas gosto de ouvir essa vida que me passa ao lado, vinda da rua, como passamos ao lado dos casais com filhos a caminho do café e pensamos que ali, talvez, seríamos felizes. Será que pensam de nós, ao ver-nos passar, aqueles é que são espertos, ou ali vão dois tristes? Por momentos, sinto-me no presente, que sempre me escapa entre os dedos. Que será para a velha dona Laura, vizinha dos seus noventa anos, ouvir os meninos a gritar na rua, a cadela que ladra, a música dos seus dias idos, detrás das persianas corridas? Temos medo de que morra sozinha, mas ela dá sinais de vida; uma meia azul, solitária e ressequida, na corda da roupa, uma combinação velhinha, pedidos de socorro.

Domingo, que fazer das suas horas que se arrastam e me moem numa mó pequenina?

Domingo que nem todos os cigarros do mundo preenchem. Que fazer das suas horas que se arrastam e me moem numa mó pequenina? De súbito, o vazio emerge, retira sua máscara, mesmo que a cabeça não consiga nem viajar. Irrequieta, levanto-me da cama. Saio do quarto. Abeiro-me da secretária. Abro uma página do computador. Da janela, a estrada ostenta seu mutismo aterrador. Deitada na luz amarela do quarto, a música dos filhos alheios embala-me até a agonia. Tomo consciência do meu corpo. Vou dentro de uma onda lúbrica que é tristeza, voracidade. Os meninos na rua salvam-me. Recupero as forças, levanto-me, expresso vontade de preencher o tempo, aldrabar as horas estúpidas. Tudo sai errado ao domingo: a gema dos ovos estrelados rebenta, os penteados do tédio, o vinho que nunca está fresco, a semana ameaçadora na ponta das unhas que se arranjam ao domingo. Conheço quem tire a tarde para a leitura. Quem corra, sonhe, durma, quem planeie a semana.

Será a eternidade um caudal de domingos ou um dia útil? Não foi sempre assim, mas já não me lembro de como costumava ser. Quando a Vera me esperava na esquina para irmos a Lisboa ver discos em segunda mão e o domingo eram olhares pela rua, um renque de telhados à janela do comboio, uma amizade em silêncio, de mãos dadas. Ou, antes ainda, os dias da comunhão, da família, da perna de peru assada que minha avó preparava desde a noite anterior. Há tanto tempo vivo esse domingo perpétuo que esqueci os outros. Na segunda de manhã, os desenhos a giz das crianças estão gravados no asfalto, diante do prédio. Grandes bonecas, chupa-chupas, unicórnios, jogos da macaca de várias cores, pedidos de socorro ou boa ventura.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #34 jun.2020 em maio de 2020.