Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Caça-fantasmas

Os leitores-fantasma somos nós mesmos, fumando os nossos livros, engasgando-nos com eles, morrendo mais depressa à medida que os fumamos

01out2020 | Edição #38 out.2020

Tenho pensado em fantasmas. Presenças pressentidas no avesso das coisas, talvez inexistentes, talvez não. Escrevo e o seu rumor assoma. Penso que me leem, que andam por aí, como fumo à minha volta e, então, apago o cigarro. Quem seriam? Fantasmas não do passado, não do presente; do futuro, se calhar, fantasmas de companhia.

Escrevo diante da fotografia de Alec Soth em Sleeping by the Mississippi (Steidl, 2004): uma mulher de camisola amarela olha-nos num quadro pendurado numa parede azul-água. Na sala onde me encontro, o fantasma é ela, cujo cabelo ruivo me fita à medida que teclo. Mas, por trás da parede, espreita uma cadeira vazia e outra parede ainda e talvez eu tenha de esperar que regresse quem estava sentado nela. Ou o fantasma é a cadeira vazia, as suas quatro pernas, as suas costas negras, e os fantasmas sejam não um “quem”, mas um “o quê” pelo qual mais vale esperarmos sentados.

O mundo parece grande demais só para nós e demasiado pequeno para aqui andarmos sozinhos. Por vezes, os fantasmas aparecem em sonhos. Noutros momentos, parecem preferir animar as tardes monótonas — a torneira pinga, a porta range, o elevador do prédio desce sem termos dado conta de ter sido chamado. Parece que os fantasmas requerem as suas jaulas, que supõem os edifícios onde vivem, que só existem na medida em que existem casas assombradas. 

Mas encontro-os, também, dentro dos livros, entre as suas páginas, como flores que ali secaram. Dou com eles na cara das pessoas que conheço, entrevejo-os nas unhas dos outros, em vincos de testas, no pó dos vidros da janela do andar em frente, entreaberta, apesar do frio.

Encontro os fantasmas dentro dos livros, entre as suas páginas, como flores que ali secaram

Às vezes perguntam aos escritores se imaginam os seus leitores, se os concebem, se têm um leitor ideal. E os leitores-fantasma? Aqueles que leem o que vamos escrevendo e nos enchem a cabeça de fumo. Leitores que somos nós fumando os nossos livros, engasgando-nos com eles, morrendo mais depressa à medida que os fumamos. Espanta-me o modo como o quotidiano alberga a mudança: a velha cadela medrosa que, sem que saibamos explicar o porquê, esquece-se do medo; a mãe que, sem que saibamos explicar o porquê, desiste da liberdade; o velho pai que, após anos, aceita ajuda dos filhos; a mudança das tonalidades da luz na encosta da serra, à medida que o verão finda.

Medo

O medo não dá lições. Perdido o medo, perde-se o que aprendemos com ele. Expulsa-nos como se expulsa alguém de uma casa e vamos esquecendo como era a casa por dentro. Quer-nos ou para escravos, ou para nada. Estrangeiros ao medo, esquecemos como era. Vamos por aí tal nunca o houvéramos conhecido. A minha cabeça caça fantasmas. Escrevo, sem dar conta de que é escrevendo que os acordo, que se erguem à medida que a página cresce. Atarantada, caço-os, sem dar conta de que são o pó que levanto ao caçá-los, sem me aperceber de que o fantasma sou eu. Guardo-os nos livros para me distrair de que, escrevendo-os, multiplico as suas casas, e que, livro após livro (lido ou escrito), só acrescento portas a um bairro de casas assombradas.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.