Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
Um país contra os livros
Intimidação judicial a João Paulo Cuenca e queima de obras de Paulo Coelho dão prova do ódio à leitura no Brasil de 2020
13out2020Ignorância e má-fé fundamentam mais de oitenta ações judiciais movidas contra o escritor carioca João Paulo Cuenca por pastores de Igreja Universal do Reino de Deus. Seu suposto crime é atualizar o famoso dito de Jean Meslier, sacerdote cristão morto em 1729. “O homem só será livre quando o último rei for enforcado nas tripas do último padre”, escreveu o religioso, cuja posteridade se deve sobretudo a Voltaire, difusor de suas ideias. Nos 114 caracteres de um tuíte-paráfrase, Cuenca substituiu o monarca pela primeira-família e o cura pelos funcionários do “bispo”. Nem no século 18 nem no 21 a frase ameaça a liberdade religiosa ou a integridade física de quem quer que seja. Adverte, a partir de uma forte imagem literária, sobre as interações perversas entre poder e religião. Coordenados, os processos contra João Paulo Cuenca têm como objetivo censurá-lo e intimidar todos os que pensam como ele. E só fazem confirmar que o escritor está certo: no Brasil de hoje Estado laico é uma abstração e a liberdade, um resíduo. Estupidez é mato.
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Num vídeo que circula nas redes sociais, um casal de boçais e a boçal que os filma queimam um exemplar de Verônica decide morrer, de Paulo Coelho. O escritor, que já vendeu mais de 300 milhões de exemplares pelo mundo, é tratado como petista, comunista, “mago de merda”, “fia da puta” e outros mimos. “Ele pediu pra não comprar os produtos do Brasil né, lá fora, falando mal do Brasil, agora eu tô aqui queimando os produtos dele, que também não prestam”, diz a adorável senhorinha fascista. “Lesa-pátria”, grita o senhorzinho de bigode suspeito. Por conjugar ódio, anti-intelectualismo e desinformação, a cena é a melhor propaganda institucional do oxímoro chamado “política cultural bolsonarista”. Em sua pantomima, os Savonarolas de churrasqueira representam todo o espectro do atraso, do gado verde-e-amarelo a empresários arcaicos, passando por artistas medíocres em busca de sinecuras e economistas terrivelmente liberais.
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Nas primeiras semanas pós-pandemia, Paulo Guedes aparecia nas telas à frente de uma portentosa estante vazia. Em pouco tempo, conheceríamos o perfil de leituras do ministro da Economia. “O caso da fusão das duas Alemanhas eu conheço profundamente, no detalhe, não é de ouvir falar. É de ler oito livros sobre cada reconstrução”, contou ele a seus pares na célebre reunião ministerial de 22 de abril. “Então, eu li Keynes três vezes no original antes de chegar a Chicago.” A frugalidade literária de Guedes talvez explique seu empenho em eliminar a isenção de impostos para livros. Para ele, livro não só é um produto como outro qualquer como é consumido apenas pela elite. “Eu também, quando compro meu livro, preciso pagar meu imposto”, disse Guedes em audiência pública no Congresso. É, portanto, um alívio para os cofres públicos que a reforma tributária não dependa de consumidores como ele.
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Em 1764, Denis Diderot fez circular a Carta sobre o comércio do livro. Filósofo e editor,ele se dirige a magistrados para explicar porque vender o que nosso líder definiu como “amontoado de muita coisa escrita” é diferente de vender armas, cloroquina ou indulgências. “Um erro que vejo ser cometido sem cessar por quem se deixa enganar por máximas genéricas é o de aplicar os princípios das manufaturas de tecidos à edição de livro”, escreve Diderot sobre uma contabilidade que não obedece apenas às variações entre dever e haver. Três séculos mais tarde, a França de Mitterrand faria eco às preocupações iluministas em diversas medidas de proteção ao mercado editorial. A convicção é simples: entregar a produção de livros à dinâmica da oferta e da procura é condenar de morte as editoras menores e o pensamento minoritário face às grandes tiragens e à reprodução do óbvio. Numa democracia que merece esse nome, fortalecer a emancipação intelectual dos leitores é fortalecer o país.
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Preocupado em implantar sua política econômica demofóbica, Guedes não parece cultivar Diderot, presença também improvável na churrasqueira do simpático casal – que em sua militância se aproxima do ministro na ideia de que livro é um “produto” como outro qualquer. É ainda improvável que títulos como Jacques, o fatalistafrequentem a bibliografia de numerosos rebanhos de fiéis sujeitados a um único livro, ou melhor, à leitura manipuladora de um livro milenar de libertação espiritual. Dentre os inquilinos de Brasília, lê-se demais as memórias de um facínora e, de menos, a Constituição.
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A criminalização da opinião, o anti-intelectualismo generalizado e o cerceamento econômico da liberdade editorial são pilares do obscurantismo. Que me desculpem os camelôs da moderação, mas quem não está contra o autoritarismo de forma clara e inequívoca, sem adversativas, é de alguma forma cúmplice da barbárie.
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