Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Todos os lutos do luto

Em ‘John’, a poeta Julia de Souza confronta pelo ensaio a demência progressiva do pai e a dinâmica peculiar de sua perda

23nov2023 | Edição #76

Todos os lutos se parecem, mas cada um é devastador à sua maneira. No caso de John, ensaio pessoal da poeta Julia de Souza, perder o pai é um lento processo que, se não prepara ou ameniza a abrupta interrupção da morte, dá a ela sentidos diversos. Tomado pela demência, John vai sendo privado de expressão, memória e cognição. Mais do que filha enlutada, ensimesmada na dor, a autora cultivou longamente “a vontade temerosa de acessar a forma da consciência demente” do pai, tendo ela mesma atravessado “períodos de névoa existencial, apagamento e aflição profunda” desde uma crise psiquiátrica desencadeada na adolescência.

John, o livro, ergue-se, portanto, em território pantanoso, o da desarticulação de John, o homem, e da recomposição contínua de Julia, narradora que estrutura no diapasão da dúvida um relato que declara precário. “Aqui parece haver um risco imenso de que cada frase estampada se cristalize sem possibilidade de retorno”, escreve, atenta ao risco de “carimbar” (a expressão é dela) com sentenças judiciosas a memória fugaz e complexa da perda do pai. “Cada linha escrita é também o apagamento de outra rememoração possível”, observa.


John é o ensaio pessoal da poeta Julia de Souza sobre perder o pai

A concentração e a economia próprias de poesia — há um diálogo que convida à leitura ou releitura de As durações da casa (7Letras), reunião de poemas da autora lançada em 2019 — livram John da banalização anedótica ou sentimental que sempre ronda os relatos do luto, esse gênero sem spoiler. Quarenta e três seções — em geral longas demais para se definirem como “fragmentos” e demasiado curtas para configurar “capítulos” — conduzem o leitor pelos meandros de perdas múltiplas e insidiosas.

John era inglês. Dominava a língua portuguesa com virtuosismo, resultado da determinação com que se instalou no Brasil. Engenheiro, trocaria longa experiência com mecânica dos solos por uma pesquisa científica sobre a visão das abelhas — movimento “mais impetuoso do que lógico”. Na ditadura, amargou um ano de cadeia por suposta associação à guerrilha. “Criatura de hábitos”, sempre usava camisas com bolso, onde dispunha metodicamente “uma caneta-lapiseira, um lenço de pano e um pequeno pente”. Cultivava a previsibilidade, com raros excessos. Pai tardio, sempre pareceu “velho aos olhos da filha” que, mais de cinco décadas mais nova, assim o definiria: “era um estrangeiro. E era um velho estranho”.

Austeridade afetiva

Na vida familiar, a contenção era regra. Entre pai e mãe não se percebia “manifestações flagrantes de afeto”; antes, um intuído “jogo tão cognitivo quanto erótico”. Numa carta que escreveu a John, parte de tarefas da escola, a filha diz ter pego “carona na desenvoltura afetiva” dos colegas para soltar um “eu te amo” — “nunca fez parte do vocabulário da minha relação com meu pai”.

A resposta viria por escrito e a ela pareceu intrigante. Surpreso — “não sabia que você gostava tanto de mim!” — e discretamente feliz — “mas fiquei contente de saber” —, o pai logo se recompõe — “agora chega de elogios, não acha?”. E deixa uma pista possível para o futuro confronto da filha, então aos dez anos, com sua memória: “o que você faz melhor mesmo é escrever. É difícil uma criança da sua idade escrever tão bem. Será que você vai ser escritora ou jornalista…?”

A austeridade afetiva não deixa de ser uma ética dos sentimentos — ou pelo menos de sua expressão — e é determinante na forma de John. Em consonância com o que, na falta de termo mais exato, poderíamos chamar de “personagem”, o pai por escrito, a narradora desconfia de formas consagradas de inventariar a perda. “Identificação e repulsa” acompanham, por exemplo, a leitura do Diário de luto, em que Roland Barthes purga, aos 62 anos, a morte da mãe. “A languidez com que ele encara esse luto me incomoda”, observa a narradora, “me soa autocomplacente — seu Édipo não se constrange —, infantilizada ou até algo maníaca”.

A concentração e a economia próprias de poesia livram ‘John’ da banalização sentimental

A escrita que se move pela dúvida só encontra limites nítidos no concreto. A princípio na casa, extensão do pai que, sem ele, torna-se uma fantasmagoria, “permanecia, mas não vigorava”. Como permanecia sem vigorar o corpo de John, submetido a variados tipos de sofrimento. Ao vislumbrar sua esqualidez na cama de hospital, vem a constatação: “um corpo em agonia não se rende a nenhuma interpretação”. É o limite do que pode dizer. Onde termina a fala e, talvez, comece a escrita.

Me referi não por acaso à “desarticulação” de John, o homem. Pois o paralelo mais próximo e estimulante que vejo com John, o livro, está em Desarticulações (Editora 34), de Sylvia Molloy. No que também é um ensaio pessoal, a crítica e romancista argentina enfrenta a demência de M. L., amiga e ex-companheira. A despeito da diferença de ponto de vista, Desarticulações também nasce de uma interação rigorosa entre memória e esquecimento, escrita e silêncio. Em 2010, Molloy lança o livro simultaneamente a El eco de la madre (O eco da minha mãe), em que a amiga Tamara Kamenszain inventaria, na poesia, o confronto com a demência da mãe. No processo, as duas trocaram impressões e textos a que Kamenszain alude no ensaio “Narrar-se a si mesma — Versificar a outra”.

Pesando as estratégias de abordagem de “um fenômeno que estava transformando a interlocução com nosso ser amado ao limite do indizível”, Kamenszain sublinha o quanto uma e outra não se deixaram reduzir aos estereótipos dos gêneros literários. Evitam “tomar esse comprimido cujo frasco alguns se obstinam em etiquetar como ‘literatura’ e que nos transforma em imaginativos ou verazes, poetas ou narradores, ficcionistas ou documentaristas”. Permanecem as duas num território comum em que “se deixam contaminar por essa indiferenciação mas sem perder as diferenças”. Território que agora acolhe Julia de Souza e John.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #76 em novembro de 2023.