Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
Sofrência de direita
Trata-se da crônica de um país em que vencedores históricos comportam-se como perdedores e marginalizados
09jul2020Perdeu, Marilia Mendonça. A nova Rainha da Sofrência é a direita brasileira. Sem coragem de abraçar o bolsonarismo pão-com-leite-moça, seus simpatizantes sonham com um presidente que saiba comer de garfo e faca. O cardápio pode ser o mesmo, mas é preciso ter modos.
Sebastianistas ao reverso, os sofrentes não esperam o redentor, mas vivem na contagem regressiva para que o inconveniente vá embora. Enquanto isso sofrem porque “apanham da esquerda (sic) e da direita (sic)”. Sofrem porque a extrema-direita passou do ponto e deixou a nu a crueldade social que têm em comum. Sofrem porque um lobby histórico, transnacional e paranoico da esquerda os interdita o prestígio intelectual. Sofrem, em suma, porque em sua fantasia sadomasô, os esquerdistas, roupa de couro e chicotinho em riste, os empurrou para o vale de lágrimas em que vagam hoje.
Baseado na história, Enzo Traverso escreveu Melancolia de esquerda (Âyiné), ensaio que mostra como a derrota é parte constitutiva das lutas por mudança. Baseados em seus umbigos, muitos vêm escrevendo coletivamente o ensaio psicossocial Sofrência de direita. Trata-se da crônica de um país em que vencedores históricos e arrivistas comportam-se como perdedores e marginalizados – enquanto, é claro, botam mais pressão na garganta do subjugado.
Sofrimento une. Desde 2016 essa turma atravessa, solidária, a terrível provação de ser chamada de golpista por ter apoiado um golpe. Como ninguém larga a mão de ninguém, até hoje explicam porque cabeça de porco, orelha de porco, focinho de porco e rabo de porco não perfazem um porco. Acadêmicos estrangeiros inexpressivos são convocados de quando em quando para fundamentar suas hipóteses.
Não faz muito tempo, a insidiosa esquerda era a única culpada pela sofrência. Hoje divide o papel com os fascistas, aqueles que essa mesma direita se recusava a chamar pelo nome – embasada intelectualmente na fábula de Pedro e o Lobo. Agora o bicho que está pegando é outro e cada um se desvencilha como pode de bicadas dos corvídeos a que deram milho e voto.
Obnubilados pela dor, os sofrentes ainda requentam as teorias da equivalência de seus inimigos, que aproximam extrema direita de uma esquerda que de extrema nunca teve nada. É uma espécie de rivotril para a má consciência: não dopa mas dá aquela relaxadinha.
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Paulo Roberto Pires
Essas criaturas sensíveis têm ficado muito abaladas quando, de alguma forma, aproximam suas posições do fascismo. Inventaram para si um frankenstein operacional, o “técnico”, criatura de terno ou tailleur que, por apertar o botão da dinamite com engenho e arte, não é responsável pela explosão. Há não muito tempo, a comparação de um deles com Aldolf Eichmann despertou sofrência ostensiva. Ninguém ligou muito porque, assim como o mal ali apontado, o coitadismo também tem um aspecto banal.
Por uma curiosa lei da natureza, os sofrentes de direita têm passado poucas e boas com a derrubada de estátuas de escravocratas, colonizadores e déspotas. Nenhuma novidade, pois a empatia com o que é inanimado costuma provocar neles dores dilacerantes. Em protestos, empenham solidariedade a vitrines e prédios como nunca o fazem com os atingidos pelos meganhas – todos são partidários da não violência seletiva e das platitudes, não necessariamente nessa ordem.
A violência verbal também machuca gente tão sensível. Acostumados a defender o indefensável candidamente, ao serem confrontados reclamam da truculência de quem os “agride” ou “patrulha”. Não veem nada de mais, por exemplo, em pregar criminalização de movimento social ou pedir tolerância para o intolerante do Planalto.
Instituto Mimimi
Precisamos dar um basta nisso. Sugiro que, além de produzir manifestos anódinos, os sofrentes banquem um processo de reeducação política continuada. Poderiam criar um think tank e batizá-lo Instituto Mimimi. A missão desta organização, que nem precisa de muito think, é difundir de forma elegante ideias abissais.
Cursos poderiam provar, por exemplo, como o socialismo foi mais danoso para o mundo do que o fascismo. Ou, abordando um outro tema que os faz sofrer, criar o fórum de debates “Black lives matter?”. A interrogação já seria gancho para uma campanha de valorização do indivíduo “sem cor” que vive dentro de cada racista abjeto. Afinal, diria Hebe Camargo, todas as vidas importam – e sobretudo as do andar de cima.
Essa desdita só vai acabar, me lembra o João Paulo Cuenca, quando o último sofrente for blindado de qualquer crítica pelo mais solícito dos hipócritas. Mas tenho para mim que, mesmo quando consolidada, a República dos Sofrentes ainda cantará o hino da rainha hoje deposta: “Ninguém vai sofrer sozinho/ Todo mundo vai sofrer”.
O colunista escreve quinzenalmente no site da revista dos livros.
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