Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Punição para os genocidas

Documentário lembra que devemos buscar justiça para os mais de 270 mil mortos na pandemia

11mar2021 | Edição #43

Agora que, soterrado por mais de 270 mil brasileiros mortos, o mais pusilânime dos analistas consegue, por consciência ou conveniência, digitar g-e-n-o-c-í-d-i-o, fica a pergunta de um zilhão de rachadinhas: quando e como a camarilha que nos ameaça pagará pelos crimes perpetrados contra a humanidade? Penso menos no trololó do “tribunal da história” do que em julgamento para valer. E, de preferência, cadeia, por mais precária que pareça qualquer punição diante do mal que já nos fizeram e ainda fazem.

Meus delírios de justiça no país do centrão e das milícias foram despertados pelas quatro horas e meia de A memória da justiça. Realizado nos anos 1970 e finalizado depois de intermináveis desavenças com produtores, o documentário de Marcel Ophuls investiga a responsabilização individual e coletiva pelo nazismo e pela guerra do Vietnã.

Sim, o cineasta traça paralelos entre o Terceiro Reich e o imperialismo americano, afrontando “especialistas” sempre a postos para defender seus argumentos, supostamente técnicos, e despolitizar os debates. E, sim, o paralelo se aplica ao fascismo tabajara – ainda hoje normalizado a cada vez que o Cavalão é tomado por “iliberal”.

Ophuls já havia metido a mão no vespeiro da culpa coletiva em A tristeza e a piedade. A obra-prima de 1969 também passa de quatro horas escarafunchando, em arquivos e na memória de moradores de Clermont-Ferrand, o colaboracionismo durante a ocupação nazista, questão que tanto envergonha a França.

Passado

A memória da justiça é centrado principalmente nos julgamentos de Nuremberg. Ophuls descobriu, num depósito do exército americano, mais de cinquenta horas de filmagens, sem edição, dos tribunais internacionais que entre 1945 e 1949 examinaram a responsabilidade de membros do alto comando nazista, ministros civis e militares, burocratas, médicos, juízes e empresários – já pensaram? As sentenças variaram entre forca, prisão perpétua e penas de no máximo vinte anos. E, é claro, absolvições.

Ophuls se interessa pelos que se livraram do cadafalso ou de apodrecer numa cela. Todos juravam não ter conhecimento exato do que se passava nos campos de trabalho e extermínio e tampouco se consideravam responsáveis pelas atrocidades, apesar de ocuparem posições de comando. Uma lógica que fez escola através das décadas e insiste em chegar ao Brasil de 2021.

Particularmente perturbadora é a conversa com o arquiteto Albert Speer, homem altivo e sofisticado, que depois de duas décadas na cadeia concedia entrevistas frequentes e chegou a publicar memórias eivadas de sensacionalismo. Speer assumiu responsabilidade por todas as acusações que foram feitas mas, sempre que podia, dizia não ter ideia da solução final. Desafia Ophuls a localizar registros de qualquer pronunciamento antissemita de sua parte. Sorri, é gentil e sedutor. Depois de sua morte, em 1981, ficou provada sua participação ativa em deportações e no saque de patrimônio de judeus.

Em outro momento, tendo com fundo a trilha sonora de A roda da fortuna, o musical estrelado por Fred Astaire, Ophuls percorre paisagens nevadas e bucólicas – “os nazistas na Alemanha parecem sempre escolher lugares adoráveis para viver”, comenta ele – em busca do paradeiro de Herta Oberheuser. Em Stocksee, colhe testemunhos sempre simpáticos sobre a médica de família que ali se instalou em 1952, depois de cumprir cinco dos vinte anos a que fora condenada por experiências macabras com mulheres e crianças – aplicava injeções e dissecava-as vivas no campo de Ravensbrück. Só em 1958 a doutora Herta, que foi solta por bom comportamento, teve seu registro profissional cassado. Morreu vinte anos mais tarde.

Ophuls conversa com simpáticos velhinhos alemães, todos dizendo ter horror à política e aos políticos e, àquela altura, nos anos 1970, minimizando o envolvimento das próprias famílias com o regime. Universitários dividem-se entre o debate sobre a responsabilidade e a defesa de um ponto final na questão, para que a vida supostamente siga em frente. Num depoimento inusitado, casais de meia-idade, nus numa sauna coletiva, admitem que, sempre que puderam, pais e professores evitaram conversas sobre colaboracionismo e culpabilidade.

Quarenta e cinco anos depois da estreia do filme, continua sendo impossível obter respostas categóricas sobre as questões levantadas por Ophuls. Mas o essencial está em seu título: A memória da justiça. A falta dela, com a impunidade histórica de torturadores e a complacência com a violência de Estado, nos trouxe até aqui. Seu cultivo pode ser uma das poucas chances de nos tirar do poço que, no fundo, parece ter outro poço. Com um alçapão.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #43 em fevereiro de 2021.