Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Perder o pai

Em ‘O retorno’, Hisham Matar faz uma viagem de reconhecimento e estranheza à Líbia, país em que nasceu e que lhe impôs a orfandade

08dez2022 | Edição #65

Não ser pai é escolha; perder o pai é, no entanto, inevitável. Em alguma medida, ser filho, condição da qual também não se escapa, é se preparar para o que não há preparo. Observada a dita ordem natural, virá o momento, precoce ou tardio, de rompimento da barafunda de afetos e rusgas, identificações e recusas que se acumulam numa memória essencial, única herança da qual não conseguimos nos livrar — tenha ela a justa gravidade do patrimônio ou o peso de um fardo.

Quando perdeu o pai, Hisham Matar já tinha perdido a pátria — por mais de quatro décadas, o escritor viveria entre Nova York, Nairóbi, Cairo, Roma, Paris e Londres. A ele, à mãe e ao irmão, Jaballah Matar legou a impermanência do exílio. Homem rico e culto, poeta e diplomata, dedicou-se tão apaixonadamente aos seus quanto à luta pela independência e democratização da Líbia, país que por décadas sofreu sob o jugo colonial e de uma longa ditadura.

Transformado em inimigo por Muammar Kadhafi, que em 1969 derrubou o rei Idris I, Jaballah foi sequestrado no Cairo em 1990. Manteve com a família uma correspondência errática e lacunar. Das cartas, depreendia-se uma única certeza: eram prova de que Jaballah continuava vivo, em algum lugar. Ao cabo de seis anos, instalou-se um silêncio cada vez mais aterrador. O não dito trazia a notícia que tanto se temia: em algum lugar, e de algum modo, o pai estava morto.

O retorno, de 2017, é o terceiro livro de Hisham Matar e o primeiro em que aborda de forma direta a ruptura que definiu sua vida. Em No país dos homens (2006) e em Anatomia de um desaparecimento (2011), Matar lançava mão de artifícios ficcionais para rememorar a infância e purgar a orfandade, estratégia que abandona em favor da prosa ensaística com que relata a dolorosa viagem de volta à Líbia e que lhe valeu o Pulitzer de Biografia em 2017.

“Parte do que tememos no sofrimento — talvez a parte que mais tememos — é nossa transformação”, observa ele, que deixou o país definitivamente quando tinha nove anos e voltou, acompanhado pela mulher e pela mãe, aos 42. A viagem é plena de reconhecimento e estranheza, de acirramento de conflitos e de reconciliações miúdas. Assim como nós brasileiros bem o sabemos, Matar lembra como é difícil, quase impossível, o pertencimento pleno a um país que por tantas vezes e de tantas formas não hesitou em ser carrasco de seus cidadãos.

Reencontros

A Líbia reencontrada é uma vertiginosa sucessão de tios e primos, de sabores e de luminosidades, das casas da infância e das ruínas da ditadura. A cada passo Matar confirma uma intuição ou apreende algo de novo sobre o pai, lançado às condições subumanas da prisão de Abu Salim, onde passou as primeiras noites recitando poemas tradicionais e onde provavelmente foi morto num massacre que deu cabo de 1.270 prisioneiros indefesos. Mas essa era apenas uma das hipóteses, todas inconclusivas, que ao longo de anos mobilizaram campanhas internacionais e alimentaram em Matar uma tristeza avassaladora.Narrar o pai é, para ele, narrar um país. Não há separação possível entre a história com agá maiúsculo e a história pessoal, entre o poder instituído e sua intrusão nas vidas privadas. “Quando Kadhafi levou meu pai, ele me pôs num espaço não muito maior do que a cela onde meu pai estava”, compara. “Eu caminhava de um lado para o outro — um lado, raiva, do outro, ódio — até sentir minhas entranhas encolhendo-se, rígidas”.

Matar lembra como é difícil o pertencimento pleno a um país que tantas vezes foi carrasco de seus cidadãos

A sensação não é estranha às periferias colonizadas. Em Memórias de Aldenham House, Antonio Callado expunha essa tese pela boca do paraguaio Facundo Rodríguez. “Nossa história não é como a francesa, ou a inglesa, onde há rainhas guilhotinadas e reis barba-azul, onde há mil anos acontecem mil coisas, mil vezes por dia”, observa o personagem ao falar da sobressaltada vida política latino-americana. “A nossa é uma história tão pequena, tão simples, que vira história pessoal, íntima. Uma tragédia familiar”.

Não por um acaso, todos os anos, Matar, a mãe e o irmão, que viviam em países diferentes, se reuniam para lembrar o aniversário de desaparecimento de Jaballah. Em torno de muita comida, os três passavam horas falando. “Contávamos e recontávamos a história de como tudo aconteceu. A cada ocasião, um de nós lembrava de um detalhe novo. Então contávamos outras histórias, tributárias da narrativa central, histórias que se afastavam, mas sempre voltavam ao mesmo evento. Éramos as testemunhas ao redor da cena de um crime”.

O lugar do pai aos olhos de sua filha Annie Ernaux

É particularmente cruel que, na saga da busca pelo pai, Matar termine por se submeter a um encontro com Saif al-Islam, o filho de Kadhafi que, a um dado momento, tentava retificar no exterior a imagem do país. Com gentileza repulsivamente estudada, o filho do assassino acena ao filho do assassinado uma declaração oficial sobre o paradeiro de Jaballah, sugerindo que os dois devam se considerar amigos e irmãos. “As pessoas não podem escolher sua história”, responde ele. “E se dois homens com histórias tão diferentes quanto a minha e a sua podem vir a se enxergar como amigos e, quem sabe, até como irmãos, então isso é algo que sem dúvida fará muito para sanar nosso país”.

Hisham Matar se identifica com uma linhagem mítica de filhos que romperam com os pais atravessados pelas convulsões de seus países. São personagens como Telêmaco e Hamlet que, aponta ele, “vieram ao mundo por meio de outro homem, um fiador que, com sorte, abre o portão da forma mais gentil, talvez com um sorriso reconfortante e um tapinha encorajador no ombro”. Viver, observa ele, é sentir para sempre a “presença fantasmagórica” dessa mão, “não importa que peso seja posto sobre aquele ombro ou o número de beijos que uma amante plante ali”.

Há um paralelo possível entre O retorno e A ausência que seremos (2005), relato dilacerante do colombiano Héctor Abad sobre o pai, sanitarista que também dedica a vida à política e termina assassinado por grupos paramilitares. Se a Abad restou o consolo duvidoso de velar um cadáver, Hisham Matar teve que se haver com um imponderável que, sustenta, é inerente ao fim, a qualquer fim: “É de alguma forma, no corpo, no conhecimento físico da eternidade de cada momento, a natureza expansiva do tempo e do espaço que enunciados declarativos como ‘Ele está morto’ não são precisos. Meu pai está morto e está vivo. Não tenho uma gramática que o apreenda”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.