Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Passeios pelas fronteiras

Ana Martins Marques, Anne Carson e Virginia Woolf partem da fluidez dos gêneros em poesia e prosa reflexivas e provocadoras

07set2023 | Edição #74

No extraordinário De uma ilha a outra, Ana Martins Marques observa:

Às vezes parece possível/ colocar sobre uma mesma mesa/ uma lira e um colete salva-vidas/ uma concha e um isqueiro/ um poema e um passaporte/ uma guirlanda de flores/ uma pedra vulcânica/ dinheiro, celular, cigarros.

Logo, porém, pondera:

mas não é bem assim/ o passado/ não é uma mesa/ é antes um sótão/ um armário/ com gavetas/ incrustadas/ em você, no mundo/ encravadas na carne/ nos livros nos dias.

E, em resignação ambígua, conclui:

já estava assim/ quando cheguei/ o mundo/ mobiliado.

A imagem da mesa que tudo acolhe — “mais importante que ter uma memória é ter uma mesa” escreveu ela em outro momento, na série “Arquitetura de interiores” — sugere a própria estrutura do longo poema, publicado na coleção Círculo de Poemas. Tomando como mote a imagem de um pergaminho com fragmentos de Safo, Marques superpõe poesia clássica e os relatos dilacerantes de levas de refugiados mortos ou acampados em condições subumanas em torno de ilhas onde a poeta viveu, Lesbos, na Grécia, e Sicília, na Itália. Há referências de filologia e geologia, Wikipédia e crítica literária, jornalismo e História.

A variedade das fontes e dos materiais indica menos um improvável gosto pelo ecletismo do que a firme convicção de que o “mundo mobiliado” está aí para ser desarrumado. A mesa é, nesta lógica, uma aposta no aberto, alternativa ao isolamento do sótão, aos compartimentos do armário e às gavetas, instâncias de ordem “encravadas” em “carne”, “livros” e “dias”.

À mesa é possível manipular com certa segurança objetos e referências. Mais do que um móvel, ela é superfície que pode amparar arranjos e recombinações de leituras do mundo e da literatura, do passado e do presente. Arranjos livres e provocadores, próprios do ensaio, gênero de sobreposições surpreendentes e limites tão tênues e fluidos quanto os que se podem estabelecer a partir de uma poesia reflexiva como a de Ana Martins Marques.

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Anne Carson é referência explícita no poema de Ana Martins Marques — assim como Safo, ponto de partida para De uma ilha a outra, é protagonista de momentos memoráveis em Sobre aquilo em que eu mais penso (Editora 34). Nos quatorze ensaios traduzidos por Sofia Nestrovski e selecionados por ela e Danilo Hora, a presença da poeta grega não é exatamente surpreendente, dada a intensa atividade helenística de Carson como tradutora e comentadora. Mas antes que a erudição, essa paixão estéril, se insinue, a escritora canadense põe em marcha uma complexa máquina de leitura que, na linhagem mais radical do ensaio, alia acuidade, arrojo especulativo e originalidade.

Movida por uma “valentia sem bravata”, expressando-se com a “displicência controlada das digressões” — expressões de Jean Starobinski para dimensionar o gênio de Montaigne e do ensaísmo —, Anne Carson ignora disciplinas, nos variados sentidos do termo. Em movimentos impetuosos, recombina cronologias e gêneros, aproxima os distantes e eventualmente ignora a lógica argumentativa. Afinal, aquilo em que ela “mais pensa” é o erro, o acidente de expressão que se pode chamar de “erro” e que tanto pode ensinar “com a justaposição do que vem e o que não vem ao caso”.

Todo ensaio de alto nível de complexidade é um convite renovado a acompanhar movimentos surpreendentes

Graças à astúcia dos organizadores, vê-se como a ensaísta constrói um método a partir de supostos lapsos. Depois de apontar as “três coisas” de que gosta num poema, por exemplo, declina “a quarta coisa” que lhe parece interessante no mesmo texto. Em outro momento, anuncia uma análise organizada em três momentos, cada um dedicado a uma autora. Acrescenta a eles, é claro, uma nova seção, não sem advertir: “Visto que estamos entrando na quarta parte de um ensaio em três partes, devemos nos preparar para certo grau de inconsequência”.

Impossível não lembrar aqui de “Sobre os canibais”. Num dos Ensaios mais comentados, Montaigne descreve o encontro com tupinambás, levados a um zoológico humano em Rouen direto da França Antártica, o “país infinito” que é o Brasil. Com a ajuda de um intérprete, pergunta aos indígenas o que teriam achado “admirável” no mundo que então descobriam. “Responderam três coisas”, escreve Montaigne, “e estou muito aborrecido por ter esquecido a terceira, mas ainda tenho duas na memória”.

Quem quiser que compre a inconsequência de Carson ou o esquecimento de Montaigne. Afinal, foi ele quem permitiu, no século 16, que escritas como a dela incorporem incerteza, hesitação e até autodepreciação numa prosa que antes de pretender transmitir conhecimento ou emular bom senso e lógica, simula o que há de errático no pensamento. E todo ensaio deste nível de complexidade é um convite renovado a acompanhar estes movimentos surpreendentes.

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Virginia Woolf está no centro de dois dos textos de Sobre aquilo em que eu mais penso. A Anne Carson interessa tanto a ensaísta quanto a ficcionista que, sem ter escrito um único verso, é tantas vezes associada à poesia ou a algo vagamente classificado como “prosa poética”. Em Uma prosa apaixonada (Autêntica), Tomaz Tadeu pinçou seis textos dos seis volumes que reúnem os ensaios de Woolf, juntando a eles, além de dois posfácios teóricos, excertos de As ondas e Rumo ao farol. O que os organiza é uma reflexão sobre o que a escritora via, em seu tempo, como o esquecimento da poesia e a vulgarização da prosa.

O escritor de prosa, argumenta Woolf, “subjugou seu exército de fatos; submeteu-os todos às mesmas leis da perspectiva”. A alternativa, observa, não seria a mudança, de mala e cuia, para o front da poesia, mas a invenção de um lugar próprio, de uma dicção original — traços que ela vê em Thomas De Quincey (1785-1859). Trata-se, admite ela, de um daqueles escritores que “prestam um serviço mais importante pela expansão e fertilização que provocam e pela influência que exercem do que por suas reais realizações que, na verdade, são, em geral, demasiado excêntricas para serem satisfatórias”.

O assombro insinuado no “mundo mobiliado”, no juízo da poeta brasileira, impõe seus limites e, assim, desafia a escrita

Consciente de não ser poeta e “tampouco” romancista, o autor de obras-primas discretas como Confissões de um comedor de ópio e Do assassinato como uma das belas artes “construiu”, nas palavras de Woolf, “uma categoria para si mesmo”. A ela agrada especialmente os “modos de prosa apaixonada” que De Quincey defendia, herança do melhor ensaísmo inglês clássico na disposição para o corpo a corpo, nada prosaico, com o banal e cotidiano. “Ele alterava levemente as relações ordinárias”, observa Woolf, “ele deslocava os valores das coisas familiares. E isso ele fazia em prosa”.

Como também o fazia Woolf, pelo menos na leitura de Anne Carson, para quem a “narrativa principal” da escritora inglesa consiste num “catálogo de quartos silenciosos, gaveteiros imóveis, maçãs esquecidas na mesa de jantar, do vento espreitando as venezianas de uma janela, da luz da lua deslizando pelas tábuas do piso”. É o assombro insinuado naquele “mundo mobiliado” que, no juízo de Ana Martins Marques, impõe seus limites e, assim, desafia a escrita.

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“A civilização”, escreve Anne Carson em “Desejo e sujeira”, “é resultante das fronteiras, dos limites”. Neste ensaio “sobre a fenomenologia da poluição feminina na Antiguidade” ela demonstra como a mulher, molhada e fluida, representa ameaça ao mundo ordenado e canalizado pelos homens “secos” e ordeiros. O feminino, observa, faz parte, na cidade dos homens, da sujeira, “matéria fora do lugar”.

Não é por acaso, portanto, que Carson entende a obra de ficção de Woolf como um reiterado desafio à ordem, aos limites da ordem num sentido amplo: a dominação patriarcal, a fixidez dos gêneros, o senso comum. Num outro momento, em que convoca Homero, Tom Stoppard e Elizabeth Bishop em torno de um “elogio do sono”, propõe uma ideia tão vaga e estimulante como as que surgem no ensaísmo: “Por toda sua obra de ficção, Virginia Woolf gosta de apontar a fronteira entre alguma coisa e coisa nenhuma”.

Ao escrever sobre Virginia Woolf, Anne Carson escreve sobre si mesma e sobre o ensaio, sobre o rompimento de fronteiras a partir da fluidez, mundo desmobiliado e contaminado. “Todo contato é crise”, observa ela. E “crise”, como o sabemos, guarda proximidade etimológica com “crítica”. 

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.