Poesia,

Exercícios de apagamento

Com inspiração em Marcel Proust, obra inaugura o catálogo de livros da canadense Anne Carson no Brasil

07nov2018 | Edição #1 mai.2017

O método Albertine nasce no mercado com mérito duplo: inaugura o catálogo da Jabuticaba e de livros de Anne Carson (1950) no país. De ambos se espera mais pela frente. Em seu inglês canadense, ela já publicou poesia e prosa, traduções do grego antigo, uma ópera, um manual de micro-ondas, 29 tangos e um punhado de coisas estranhas — é o caso deste Método (workout), sequência de 59 exercícios numerados, dezesseis apêndices e o ar denso deixado no vazio desses fragmentos. Quando fala de si nas notas biográficas de seus livros, é invariavelmente concisa: diz que “vive de ensinar grego”. E isso em parte por ser muito cool (algo entre Medeia e Betty Boop, segundo o crítico William Logan), em parte porque a omissão é um de seus procedimentos preferidos. Anne Carson nos oferece textos de clarões e calor, mas não de iluminação; pertencem à categoria dos relâmpagos.

Entrar em suas obras é, muitas vezes, abrir duas portas com o mesmo giro da maçaneta: para dentro do mundo da poeta e também para aquele outro, o de um poema de Safo, Gertrude Stein ou Paul Celan. “Tem Eu demais na minha escrita”, diz em um ensaio. A força que parece mover a autora a habitar obras alheias não seria apenas uma tentativa de reinventá-las, mas também de sair de si mesma. Não é Anne Carson quem dá vida nova a esses textos, são eles que põem em movimento uma vida diferente para ela: “Minha poesia íntima é um fracasso./ Não quero ser uma pessoa./ Quero ser insustentável”. O sonho de seus personagens (inclusive os históricos ou os autobiográficos) é poder esvaziar-se de si, não ser um sujeito.

O método Albertine, de 2014, transforma esse sonho em estranhamento. Publicado na série Pamphlets, da editora norte-americana New Directions (na mesma leva de Dirty poem, o Poema sujo de Ferreira Gullar), o livro toma a história de Marcel, o narrador de Em busca do tempo perdido, de Proust, e Albertine, o objeto de sua obsessão. Toma também um Marcel Proust obcecado por seu chofer, Alfred Agostinelli, e a transposição do dado biográfico em ficção. Ronda esses personagens a grande pergunta sobre o que é o desejo. Proust metaforiza o seu em narrativa, e oferece sete volumes de um romance, mas talvez nenhuma resposta.

O foco de Anne Carson, porém, recai sobre Albertine. A pergunta retorna: o que é o desejo para quem não é um sujeito? “52. ‘Só amamos o que não possuímos inteiramente’, diz Marcel. 53. Existem quatro maneiras de Albertine evitar ser completamente possuída no volume 5: adormecer, mentir, ser lésbica ou morrer. 54. Somente nas três primeiras dessas alternativas ela pode blefar.”

A Marcel e a nós, só é permitido observá-la de fora e de longe, coberta de palavras alheias, tentando escapar. Ela não está onde a vemos. Sorte dela: omitindo-se dentro desse lugar, espalha-se em outras existências e outros textos, aos quais não seremos convidados. O método é tão rigoroso quanto vago: vale como série de exercícios para qualquer um que saiba não coincidir consigo mesmo.

Quem escreveu esse texto

Sofia Nestrovski

É mestre em Teoria Literária pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.