Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O subúrbio contra o Estado

Morto há cem anos, Lima Barreto viveu e escreveu como dissidente do Brasil racista, desigual e cruel com os menos brancos e os mais pobres

01nov2022 | Edição #63

O 1o de novembro de 1922 caiu numa quarta-feira. Chovia muito em Todos os Santos, bairro do subúrbio carioca cujo nome evoca aquela data, observada pelos cristãos na véspera de Finados. Na Vila Quilombo — como Afonso Henriques de Lima Barreto se referia à casa em que vivia com a família —, sua irmã, Evangelina, desdobrava-se para cuidar dele e do pai. Aos setenta anos, o tipógrafo João Henriques chegava ao fim de uma vida assombrada por problemas psiquiátricos. No quarto ao lado, o escritor inspirava cuidados, mas não preocupação especial: aos 41 anos, estava mais uma vez acamado, estado frequente nos últimos meses, com os excessos do álcool cobrando seu preço. Evangelina serviu um chá a Afonso, informou a ele o estado de João — “Piora a cada momento”, disse — e voltou para a cabeceira do pai. Uma hora depois, encontrou Lima Barreto morto, sentado na cama, tendo nas mãos a Revue des Deux Mondes, revista literária francesa popular entre intelectuais da época. Dois dias mais tarde, a família enterraria o patriarca.

Ao descrever a cena em A vida de Lima Barreto, Francisco de Assis Barbosa, seu primeiro biógrafo e editor póstumo, citava, não por um acaso, o narrador de Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, o primeiro romance que Lima escreveu e o último a publicar em vida, em 1920. “Para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente viveu”, observa o narrador do livro. “É saber como ele morreu, como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte e como Ela o abraçou.” E é a esse momento decisivo que volto em 2022, quando o cen-
tenário da morte de Lima coincide com um dos instantes mais agudos da República de Brunzundanga, o país da crueldade e da injustiça impiedosamente esquadrinhado por ele em romances, contos e crônicas.

“Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal”, escreveu Lima em Clara dos Anjos, último romance em que trabalhou. “Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, ‘quebram o corpo’, isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.” O cemitério é o mesmo a que se refere a crônica “Os enterros de Inhaúma”, destino quase natural para seus vizinhos de subúrbio. Lima achava-o feio, não encontrava nele “aquele ar de recolhimento, de resignada tristeza, de imponderável poesia do Além” — características que, talvez, identificasse no São João Batista, destino final das famílias mais abastadas da cidade e para onde seu corpo foi levado, de trem, depois de um velório simples, em casa.

Os vinte quilômetros que separam Todos os Santos de Botafogo, onde fica o cemitério, eram quase intangíveis. É certo que havia maior probabilidade de encontrar, entre os moradores do bairro aristocrático, leitores da Revue des Deux Mondes, possivelmente comprada no comércio europeizado do centro da cidade. Por tradição, interesse genuíno ou mera ostentação burguesa, também seria mais fácil que os casarões das ruas arborizadas de Botafogo abrigassem bibliotecas como a “Limana”, inventariada pelo próprio escritor em oitocentos itens de poesia, prosa, ficção e ensaio assinados por brasileiros e estrangeiros, contemporâneos e clássicos. Na vizinhança da rua Major Mascarenhas, endereço da Vila Quilombo, poucos venciam as onze estações até a Central do Brasil para, como Lima, perambular com igual afinco e dedicação entre sofisticadas livrarias, cafés literários e os botequins mais vagabundos.

Geografia

Geografia não é destino, é ponto de vista. E é difícil entender os muitos desdobramentos da obra de Lima Barreto sem considerar a distância, até física, que ele toma em relação à capital oficial de uma república racista e demofóbica, desenhada com a geometria da desigualdade e cimentada pelos privilégios. Uma república que expulsou sistematicamente pobres e pretos para os morros e para as terras além deles. Movimentos simultâneos e complementares deram origem às favelas e, avançando sobre uma área vasta e heterogênea, de feição rural, aos subúrbios.

A Vila Quilombo era, portanto, estratégica: Lima viveu no trânsito entre esses dois registros de cidade, indo e vindo nos trens em percursos desconhecidos por grande parte dos chamados “homens de letras”. O jovem aluno da Politécnica que aos 22 anos planejava escrever uma “História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade” viveu com a consciência aguda — e insuportável — do que seria uma espécie de fatalidade social e racial: aos homens e mulheres de sua cor, nascidos na classe em que nasceu, era vedado qualquer movimento impetuoso.

Poucos se irmanavam com ele no trânsito social e intelectual. Francisco Guimarães, o Vagalume, vivia na Piedade, bem próximo a Lima, e era um dos poucos negros de destaque no jornalismo de seu tempo. Também escrevia sobre os despossuídos; porém, diferentemente do autor de Triste fim de Policarpo Quaresma, era um entusiasta do Carnaval e do samba, tendo documentado como um e outro se tornaram expressões legítimas de uma poderosa cultura de diáspora, sobretudo a partir dos anos 20.

Aos de sua cor, nascidos na classe em que nasceu, era vedado qualquer movimento impetuoso

Paulo Barreto, o João do Rio, foi outro a flanar entre essas cidades, mantendo no entanto a identidade inamovível com as elites, ainda que delas divergisse em padrões e comportamento: era negro, homossexual e tinha porte avantajado para os modelos vigentes de elegância. Lima odiava-o. No Recordações do escrivão Isaías Caminha faz dele o modelo para o “jovem jornalista” Raul Gusmão. “Fingimento de superioridade”, “gestos fabricados” e “frases de efeito” caracterizam o personagem descrito ainda como uma “híbrida figura” — “com a sua fisionomia de porco Yorkshire e o seu corpo alentado de elefante indiano, tendo sempre nos lábios aquele sorriso afetado, um horroroso ríctus, decerto o jeito de sorrir do Pithecanthropus erectus”.

O narrador de Gonzaga de Sá não deixaria de notar que, em junho de 1921, 100 mil pessoas saíram às ruas da cidade para despedir-se de João do Rio, sepultado no mesmo São João Batista onde, em pleno dia de Finados do ano seguinte, um pequeno grupo acompanhava o corpo de Lima Barreto — que melancolicamente chegou a se candidatar à vaga de João do Rio na Academia Brasileira de Letras.

Emiliano Di Cavalcanti estava dentre os amigos que foram a Todos os Santos. “No porão da casa, o pai louco gritava. Chovia muito quando saímos com o caixão pesado escorregando de nossas mãos”, escreveria décadas mais tarde o pintor, então aos 25 anos. “No cemitério, entre os amigos humildes do morto, entre os que tinham a cara inchada pelo álcool e cortada pela insônia, vi alguns intelectuais.” Di Cavalcanti evoca detalhes — “A chuva não parava. A terra caía, enlameada, sobre o caixão negro ” — e sintetiza a complexidade do escritor e do homem: “Lembro-me dele com uma ternura imensa. Como uma caricatura dolorosa, e como se eu o estivesse vendo, encostado a uma porta modesta de botequim, a sorrir para a imbecilidade anônima dos bem-confortados…”.

No precioso Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto, há muito esgotado, João Antônio lista alguns temas que fizeram do escritor um crítico “desconcertante”: os “entalados estados de sítio brasileiros”, a horrenda arquitetura urbana, “nossos gurus e sabichões”, a cultura colonizada, a “exploração cínica e demagógica dos mais fracos”, o “amor desbragado” pelo dinheiro, a destruição de “oceanos, verdes, morros”, o “pó de vaidade” dos títulos e fardões, o comércio da religião. “Aí, entre outras estocadas”, escreve João Antônio, “o porque da obra de Lima estar tão viva e doendo. E tão esquecida.”

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #63 em outubro de 2022.