Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O risco do segundo turno

Todo mundo tem o direito de votar em quem quiser — e até de perder os direitos por ignorar a ameaça do fascismo

11ago2022 | Edição #60

Todo mundo tem o direito inalienável de, mesmo se dizendo horrorizado com a extrema direita, votar em quem quiser no primeiro turno das próximas eleições.

Todo mundo tem o direito de, contrariando as recentes evidências objetivas, defender a ideia de que um segundo turno fortalecerá a democracia brasileira, mesmo sendo uma das candidaturas o sumo de todas as delinquências.

Todo mundo tem o direito de, podendo vencer o mal por nocaute, preferir o afago a candidaturas inexpressivas e, assim, transigir mais um pouco com o inaceitável.

Todo mundo tem o direito de acreditar em Terceira Via ou em Deus, mesmo que, diante de um desastre concreto e iminente, um moderado com fins lucrativos ou uma oração jamais evitarão o pior.

Todo mundo tem o direito de esperar milagre, assim como é inatacável a fé no autoengano.

Todo mundo tem o direito de reeditar a escolha difícil, empurrando para o segundo turno a disputa entre reivindicações narcísicas de suposta liberdade de escolha e as ameaças, concretas, ao futuro da democracia no país.

Todo mundo tem o direito de entender as eleições de 2022 como um pleito nos parâmetros da normalidade, como uma disputa rotineira entre posições políticas divergentes.

Todo mundo tem o direito de considerar como “posição política” legítima o estímulo ao armamentismo, a institucionalização do racismo como valor de Estado, os ataques à liberdade de expressão, a apologia da tortura e a consolidação da misoginia e da homofobia como valores dos cidadãos de bem.

Todo mundo tem o direito de alimentar o trololó da polarização e, assim, citando “recentes pesquisas” ou “enquetes” não nomeadas, atribuir a outrem seu próprio reacionarismo.

Todo mundo tem o direito de pulverizar o voto contra a barbárie e dar mais tempo para que a extrema direita manipule bondades públicas e ódios privados entre suas bases populares e empresariais.

Todo mundo tem o direito de postergar o resultado final das urnas para que o gabinete do ódio transforme a sabotagem da apuração em dever cívico.

Todo mundo tem o direito de, ao insistir no antiesquerdismo pueril, dar aquela forcinha para que a extrema direita conclua, nos próximos quatro anos, a destruição orquestrada das garantias institucionais.

Todo mundo tem o direito de preterir o coletivo em favor do próprio umbigo — e é por o termos exercido no apoio ao golpe de 2016 e nas urnas de 2018 que aqui estamos, engatados na insaciável cadela do fascismo, aquela que vive no cio.

Todo mundo tem o direito de desmobilizar e escarnecer do antifascismo e, num segundo turno, anular o voto numa capital europeia.

Todo mundo tem o direito de anular o voto e passar os próximos quatro anos se indignando com a consolidação da extrema direita.

Todo mundo tem o direito de ter direito. Até deixar de o ter. 

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Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.