Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

O futuro do futuro

Nos estertores de 2023, o colunista elege ‘o futuro da inteligência artificial’ como o gênero jornalístico do ano

28dez2023 | Edição

Eis que, inevitável como ressaca natalina, o colunista entra em breve modo retrospectivo. Os melhores livros a Quatro Cinco Um já escolheu, assim como todo mundo já listou tudo o que lhes pareceu notável em 2023. Se eu fosse inglês ou lexicógrafo, ou ainda lexicógrafo inglês, apontaria a “palavra do ano” — o Oxford Dictionary consultou “especialistas” e mais de 30 mil eleitores para escolher rizz, que tem origem em charisma, borogodó.

Mais modesto e solitário como compilador de estultice, um Bouvard sem Pécouchet, elejo aqui não a palavra, mas o gênero jornalístico do ano: “o futuro da inteligência artificial”. É que de tempos em tempos essa nossa velhíssima profissão consagra formatos para dizer o mesmo de forma diferente. Na primeira década do século, por exemplo, discutiu-se à farta “o futuro do livro”. Como toda bobagem portentosa, aquela nasceu com uma dúvida tonitruante: o e-book vai matar o livro?

Era 2007, o Kindle e outros e-readers chegavam ao mercado e até na Feira de Frankfurt o suposto debate sobre o futuro drenava preciosas horas de trabalho. No encontro com uma tradicional casa de edição francesa, me atrevi a perguntar se estavam disponíveis os direitos “eletrônicos” de determinado título. “Nós vendemos livros, não arquivos de computador”, respondeu, parisiense, a senhora até então adorável.

Nos debates sobre o futuro, não faltavam os espantosos discursos sobre a “magia do livro” — os daqui de casa, e olha que são muitos, nunca fizeram nenhum truque

Essa era a personagem típica da futurologia de boteco transformada em debate. Numa reportagem do gênero “futuro do livro”, a ela caberia o papel de porta-voz da hecatombe, antagonista do nerd que defendia o brinquedo, contraponto aos editores e seus prós e contras, alento para escritoras e escritores sérios jurando fidelidade eterna ao “impresso”. Não faltavam, é claro, os espantosos discursos sobre a “magia do livro” — os daqui de casa, e olha que são muitos, nunca fizeram nenhum truque.

Pesquisas de universidades obscuras, daquelas que de tempos em tempos provam que ovo faz bem e faz mal, davam conta de que no meio eletrônico se lê mais rápido e mais devagar, de que o e-book favorece e enfraquece a concentração, ajuda e prejudica o aprendizado. Como dizia um saudoso amigo, o melhor da vida é ficar parado: em algum momento, alguma pesquisa te favorece.

Até o insuspeito Umberto Eco cedeu ao furdunço. E transformou em livro (de papel, pelo menos a princípio) uma longa conversa com Jean-Claude Carrière sobre o meteoro do e-book. Não contem com o fim do livro (Record, 2010) nasceu clássico no gênero platitude culta, apaziguando corações e mentes sobre o papel do papel em nossas vidas.

Apocalipse do momento

O apocalipse do momento é a inteligência artificial. Seu mensageiro, o ChatGPT, foi lançado em novembro de 2022 disparando alarmes em praticamente todas as áreas da atividade humana. Trata-se de uma espécie de oráculo do senso comum, de interação elementar e, com o perdão do adjetivo, “amigável”, que mostra de forma didática como máquinas podem ser treinadas para desenvolver raciocínios complexos e, quem sabe, tomar nosso lugar.

À primeira vista, é possível fazer de um tudo com inteligência artificial: livros e fotografias, roteiros de série e sentenças judiciais, design e moqueca. Ou seja, estão postas as condições ideais para a criação de mais um gênero jornalístico sazonal: juízos contra e a favor baseados na previsibilidade de quem se entrevista ou escreve, considerações tecnológicas peremptórias, vagas reflexões filosóficas e o infalível anedotário histórico (“a IA antes da IA”). Não pode faltar, claro, o test drive em que humanos conversam ou mesmo desafiam o ChatGPT.

Parece possível fazer de um tudo com inteligência artificial: livros e fotografias, roteiros de série e sentenças judiciais, design e moqueca

Chegada a ponderações racionais e análises definitivas, a The Economist, revista que no Brasil emprega muitos colunistas como motoboy, produziu em 2023 um caudaloso trololó no gênero “o futuro da IA”. Segue uma breve antologia, organizada por algumas das vertentes cultivadas:

Alarmismo & capitalistas preocupados: “Seu empregador (provavelmente) não está preparado para a IA”

Alarmismo & capitalistas satisfeitos: “O que a IA significa para seu salário?”

Capitalistas atentos & capitalistas muito satisfeitos: “A mania do ChatGPT pode estar em baixa, mas uma nova e séria indústria está tomando forma”

Confissões & tédio: “Minha vida como operador de chatbot da IA”

Apocalipse & Trump: “IA nas urnas: como a inteligência artificial afetará as eleições de 2024”

Educação & preguiça: “IA pode tornar menos necessário o estudo de línguas”

Futuro do jornalismo & futuro do futuro: “IA está remixando o jornalismo em uma ‘sopa’ de linguagem”

Palestrinha & linguística: “Falar em IA em termos humanos é natural – mas errado”

Palestrinha & palestrinha: “Yuval Noah Harari argumenta que IA hackeou o sistema operacional da civilização humana”

Não resisti, é claro, a perguntar ao GPT, o próprio, se, afinal, IA é um gênero jornalístico. Na resposta, o tolinho garante que não, “não é um gênero jornalístico em si”. Mas que, “em vez disso, é um tópico que pode ser explorado em diferentes gêneros jornalísticos, como reportagens, artigos de opinião, entrevistas, entre outros”. Obediente, concordei e pedi que ele fizesse um título para esta coluna. Os melhores:

“Mentes de silício: explorando o universo da IA”

“Além dos algoritmos: desvendando os mistérios da IA”

“IA em ação: como a inteligência artificial está moldando o nosso futuro”

“Conectando os pontos: a influência da IA em nossas vidas”

“IA na prática: histórias de inovação e desafios éticos”

“Rumo à singularidade: navegando pelo mundo complexo da IA”

Nenhum destes títulos quer dizer nada. O gênero “futuro da IA” também não. Pois até o GPT, um bot moleque, malandro, me disse com sabedoria acaciana: “é importante lembrar que prever o futuro é intrinsecamente incerto, e muitos fatores imprevistos podem influenciar o curso dos eventos”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa em .