Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Mundos de papel

Nas peregrinações literárias, vestígios materiais de escritores e personagens viram monumentos idiossincráticos aos esforços de viver para a imaginação

01out2022 | Edição #62

Depois de caminhar pelo centro de Londres em busca de lugares onde viveram Virginia Woolf e seus companheiros do círculo de Bloosmbury, Lauren Elkin anota: “Temos de reconstruir o mundo a partir dos murmúrios do papel”. A observação, acessória ao tema principal de Flâneuse (Fósforo) — saboroso ensaio sobre a importância das ruas e da conquista subjetiva das cidades por escritoras, artistas e cineastas —, define com perfeição a prática, às vezes obsessiva, de transformar viagens em buscas insensatas por vestígios materiais de escritores e personagens, monumentos idiossincráticos aos laboriosos e inúteis esforços de viver para a imaginação. É comum falar em “peregrinação” ao fazer referência a esse tipo de expedição literária, que é da ordem dos despropósitos. O nome não me soa tão bem pelos ecos religiosos, mas dá sentido irônico a essas tentativas de tatear o impalpável. Se o fiel não vacila diante dos indícios da existência de Deus, o ceticismo do peregrino literário evapora quando ele acredita ver o que seu admirado criador viu, toca no que ele ou ela tocaram e crê decifrar “na vida real” modelos de cidades e pessoas.

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“Peregrinação” é o título de um relato desconcertante, o do encontro de Susan Sontag, aos quatorze anos, com Thomas Mann. Publicado como conto na New Yorker, é inteiramente baseado na experiência real da adolescente convencida pelo namorado a visitar o escritor alemão, instalado em Los Angeles naquele 1947. “Tudo o que cerca meu encontro com ele tem a cor da vergonha”, escreve ela quatro décadas depois. É na chave de sua proverbial afetação que Sontag começa se descrevendo como uma garota prodígio para, com maestria narrativa, desnudar-se em pequenos vexames na conversa com o autor de A montanha mágica, que ela teria acabado de devorar. O que fica do encontro é que, mesmo encontrando o autor cara a cara, a peregrinação literária é mais da ordem da fantasia. Ou o encontro de dois fantasmas: “Uma criança constrangida, fervorosa e intoxicada pela literatura, e um deus no exílio, que vivia numa casa em Pacific Palisades”.

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Pilgrimage (Randon House) é o título de um livro lançado por Annie Leibovitz em 2011. Quando foi casada com Sontag, que morreu em 2004, a fotógrafa planejava editar a quatro mãos um “Livro da Beleza”, jamais realizado. O projeto de registrar momentos de prazer estético transformou-se num roteiro afetivo pelo universo de autores e personagens. Sucedem-se paisagens que Thoreau contemplou ao escrever Walden, ou a vida nos bosques, detalhes da casa onde nasceu Elvis, um delicado vestido de Emily Dickinson preservado numa típica “casa-museu” de escritor. Na Monk’s House, casa no condado de Sussex onde Virginia Woolf viveu seus últimos dias com o marido, Leonard, Leibovitz vê-se sozinha no estúdio de Virginia, diante de sua mesa de trabalho. “Não me deixe sozinha aqui. Por favor. Fico nervosa”, lembra a fotógrafa. “Eu tinha visto fotos do cômodo de quando Virginia Woolf era viva e parecia que na mesa havia uma caixinha”, lembra. “Nessas situações você não consegue deixar de ser um pouco detetive. Você quer conferir tudo.” Não há nada, no entanto, na majestosa foto do tampo da mesa, vazia, marcada pelo tempo. Como pouco se vê na página dupla ocupada por águas turvas do rio Oise, onde a escritora se deixou afogar, aos 59 anos, em março de 1941.

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Seixos do Oise podiam ser vistos na Fundação Cartier, em Paris, numa indefinível exposição montada lá por Patti Smith em 2008. Land 250 extrapolava a música para sugerir um mergulho no universo de referências da compositora. Obcecada por Rimbaud, Patti colecionava memorabilia do poeta (com destaque para um cartão de visitas); de Woolf, guardara pedras parecidas às com que a escritora enchera os bolsos para afundar-se no rio. Anos mais tarde, as peregrinações encheriam seus livros: em Linha m, o périplo à Guiana Francesa em busca da prisão descrita por Jean Genet em O diário de um ladrão e a visita à casa de Roberto Bolaño em Blanes. A busca pelo túmulo de Simone Weil em Devoção. Em O ano do macaco (todos publicados pela Companhia das Letras), ela lembraria como gastava horas livres de uma turnê: “Um tantinho de errância passiva, uma pequena pausa no clamor, nos gritos do mundo. As ruas por onde Robert Walser andou. O túmulo de James Joyce colina acima. O terno de feltro cinza de Joseph Beuys pendurado numa galeria vazia em Oslo”.

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Em 2019, os coletes amarelos ocupavam as ruas de Paris com violência e veemência desordenadas. Adriana Armony, escritora carioca, perambulava entre manifestantes intoxicada de política, mas tendo na cabeça outros tempos e utopias: na cidade, buscava reconstituir o que aconteceu com Patricia Galvão entre 1934 e 1935, quando a militância a levou à capital de tantas revoluções. Pagu no metrô (Nós) escapa aos gêneros definidos entre ensaio, memória, ficção e história. “Gosto de pensar que Pagu circulou por esses túneis. Como era o cheiro deles? Paris tem muito de uma cidade do século 19, mas aqui e ali se levantam testemunhos de destruição”, escreve ela ao lembrar sua errância pela cidade. Surrealismo, trotskismo, desejo e ceticismo com a própria empreitada fazem de Armony uma autora-personagem, perseguindo em arquivos improváveis aquela que não é mais o “anúncio luminoso da antropofagia” imaginado por Álvaro Moreyra, mas uma mulher de diversas formas punida por sua insubmissão. Num intervalo das pesquisas, viaja à Rússia e busca refazer os caminhos de Raskólnikov em São Petersburgo. Num prédio que se considera o cenário do momento decisivo de Crime e castigo, parece resumir a arte da decepção que envolve toda peregrinação: “Depois de tirar algumas fotos, fiquei ali, de mãos vazias, esperando que em algum momento alguém abrisse a porta de acesso a uma das escadas que levam aos apartamentos opressivos que dão para o canal. Mas não apareceu ninguém”.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.