Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Jornalismo de adesão

Num momento em que o noticiário trata chantagem como articulação política, o livro ‘Operação impeachment’ lembra os laços recentes entre imprensa e golpismo

29jun2023

O legado da Lava Jato é uma dupla impostura. A partir da operação, políticos (os adversários de seus articuladores) passaram a ser tratados como bandidos. E bandidos (os aliados deles) ganharam respeitabilidade de político. A primeira invectiva deu no que deu: ajudou a eleger um fascista e consolidar a extrema direita. Mais sutil, a segunda se perpetua em parte da imprensa que segue tigrona com as esquerdas e tchuchuca com o Centrão.

A cada vez que, no noticiário de hoje, chantagem parlamentar é tratada como articulação política, ou seja, a cada vez que a farsa ameaça se repetir como história, é bom lembrar o passado recente tal qual reconstituído em Operação impeachment — Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato (Todavia). Em 168 páginas, Fernando Limongi narra os movimentos pouco republicanos que levaram à derrubada de Dilma Rousseff. Outras 101 são ocupadas por notas que se referem ao noticiário da época, pouco memorável por sua isenção.

Cientista político experimentado, Limongi dirige-se desta vez ao público em geral. Mantém o rigor do método, mas dispensa o jargão para decodificar as alianças oportunistas que chumbaram a normalidade democrática. Um coquetel de vilanias que tem como ingrediente importante a docilidade de editores, repórteres, analistas, titulares de colunas e anônimos editorialistas. “Os envolvidos, a imprensa incluída”, escreve ele, “encontraram formas de fingir que não viam o desastre se armar”.

“Ver o desastre”, é bom que se diga, não requeria dons clarividentes. Talvez fosse suficiente não aderir com muito ardor e pouca crítica ao discurso simplificador da moralidade pública. Também teria ajudado o uso mais criterioso de vazamentos bem planejados. Ou ainda recusar a demonização da esquerda, clássica fantasia persecutória que diz mais dos vícios de quem a difunde do que das virtudes que afirma resguardar.

A amnésia desta história recentíssima é espantosa diante dos rigores seletivos que têm marcado Lula 3

As denúncias sobre a compra da refinaria de Pasadena foram uma espécie de balão de ensaio dos sucessivos ataques que resultariam no impeachment maroto de Dilma. Uma estratégica divulgação de informações supostamente privilegiadas pavimentou o que Limongi chama de “construção do escândalo”. Num ambiente em que jornalistas se mostram receptivos a “conceder espaço e produzir manchetes apimentadas”, não são raras as florações de informação “plantada e regada” — expressão da excelente colunista Maria Cristina Fernandes.

É óbvio, como sublinha Limongi, que a munição de documentos sobre Pasadena não chegou aos jornais “pelas próprias pernas”. Menos rotineira, no entanto, é a constatação de que dali para a frente a obtenção de informações privilegiadas tenha passado longe de um “esforço de investigação” autônomo. Inaugurava-se um tempo em que líderes políticos passaram “a se valer do ‘correio elegante’ oferecido por jornalistas” para mandar recados urgentes ou estratégicos.

Para além de seus objetivos primeiros, Operação impeachment é uma crônica do lento desaparecimento, no horizonte do jornalismo, da necessidade de equilibrar acusação e defesa. A partir, por exemplo, das múltiplas reportagens e comentários sobre irregularidades no financiamento de campanhas, Limongi lembra o quão tortuoso é “sustentar que PT e PSDB levantassem fundos de forma diversa, que apenas um deles mereceria ser tratado como uma ‘organização criminosa’”.

Movimentos insidiosos

A instigação de políticos combinada com o beneplácito de jornalistas terminaria por transformar a cobertura em campanha. Colunistas que hoje pontificam na TV chegaram a lamentar por escrito as contramarchas que adiavam os principais objetivos dos movimentos insidiosos — o impedimento de Dilma e a inviabilização de Lula.

É saudável lembrar que o entusiasmo pelo golpismo travestido de oposição democrática é inseparável da complacência com o golpismo-raiz quando, por exemplo, o tucanato achou por bem botar em dúvida, sem provas, a vitória de Dilma em 2014. “Os editoriais dos grandes”, observa Limongi, “tampouco criticaram a insensatez da contestação feita pelo PSDB”. 

Não é preciso ser ombudsman profissional para perceber de que forma — “do dia para a noite”, afirma Limongi, amparado em profusas evidências — o noticiário adere à cruzada de Curitiba. A cobertura sobre protestos contra a corrupção não se dá ao trabalho de “identificar os grupos envolvidos” em sua organização na mesma medida em que exibe generosamente as faixas de apoio à Lava Jato e a Sergio Moro, futuro ministro da Justiça do governo fascista.

A amnésia desta história recente, recentíssima, é espantosa diante dos rigores seletivos que têm marcado análises supostamente críticas ao primeiro semestre de Lula 3. Mas ainda há tempo de evitar que, um belo dia, alguém chame Arthur Lira de Eduardo Cunha. E ninguém perceba.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).