Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

Janio de Freitas, 90

O aniversário do mais importante analista político lembra que a probidade intelectual é garantia de altivez e dignidade no Brasil de 2022

09jun2022 | Edição #58

“Como remédio verdadeiro para o testemunho de tantos golpes, consumados ou não contra o país e a civilidade, o que interessa mesmo é o reaparecimento no outono desse casal de tiês, pouco depois do casal de saíras-sete-cores, nas vindas matinais. Da aroeira, podem me ver bem de perto, e, com toda a razão, não me dão a menor importância. O resto não é vida. É o Brasil atual.”

Com essas 67 palavras, Janio de Freitas arrematou sua coluna na Folha de S.Paulo no domingo 15 de maio. Calhou de no Rio de Janeiro ser um domingo mais melancólico do que os domingos, nublado e com chuva miúda. E as 67 palavras abriram um clarão que traz não só a lembrança do grande texto, pouco frequente nos jornais como um todo e em especial na analise política, como alerta para o privilégio, substantivo, de ser contemporâneo do jornalista que completa hoje, 9 de junho, noventa anos.

‘Por semanas, meses, anos a fio, nos diz, sem dizer desse modo, que não há escolha difícil quando se tem caráter’

A longevidade não é trivial na profissão. Mais rara ainda quando acompanhada de energia argumentativa, posicionamentos inequívocos e nenhum interesse em contemporizar. Calejado por décadas de redação, bem poderia, como alguns outros, apenas administrar o muito que lhe é de direito. Mas não é assim que funciona Janio de Freitas.

Voz solitária

De 2016 para cá, um dos períodos mais infames da nossa história, Janio é voz solitária, na grande imprensa, na defesa da legalidade. Por semanas, meses, anos a fio, nos diz, sem dizer desse modo, que não há escolha difícil quando se tem caráter. Desde então vem atravessando a tormenta sem nenhuma concessão às variadas cepas de gangsterismo, à república das delações e, sobretudo, ao jornalismo chapa-branca.

‘Torna mais inteligível a barafunda brasileira, tratando com nomes próprios a escumalha que destrói nossa democracia’

Sério, jamais casmurro, nutre inesgotável interesse pelo mundo. Não pelo seu mundo particular — e olha que esse é bem vasto —, mas pelo que lhe desperta curiosidade intelectual. De novidadeiro, no entanto, não tem nada. Sua coluna semanal é decantada por filtro rigoroso e hoje de pouco uso, aquele que preza o nexo entre palavra e coisa, entre causa e efeito. Assim, torna mais inteligível a barafunda em que nos metemos, tratando com nomes e adjetivos próprios a escumalha que destrói a democracia brasileira.

Um bom desfecho

Dentre minhas duras perdas dos últimos anos estava uma fiel leitora que até o fim cumpria ritual rigoroso: domingo era dia de ler a Folha em sua ordem idiossincrática, ou seja, deixando “o Janio” para o fim. Impedia que se comentasse antes a coluna, como se evitasse o spoiler de uma trama complicada. Era a certeza de que, por mais que se aborrecesse com o noticiário — o que de fato acontecia todos os dias, tendo ela dedicado a vida à saúde pública —, encontraria um bom desfecho na coluna, que não poucas vezes sobrevivia ao efêmero do jornal, presa com ímã à geladeira.

‘As 67 palavras me salvaram um dia, talvez uma semana — mas na verdade muito mais’

Avesso a qualquer tipo de comemoração ou insinuação de elogio, ele talvez fique levemente desconfortável com esta coluna. Mas era preciso compartilhar que aquelas 67 palavras lá do primeiro parágrafo me salvaram um dia, talvez uma semana — mas na verdade muito mais. Concatenadas por firme delicadeza, elas nos lembram que, neste 2022 em que realmente vivemos em perigo, a probidade intelectual é talvez a única garantia de altivez e dignidade. Parabéns, Janio de Freitas. E obrigado.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #58 em fevereiro de 2022.