
Crítica Cultural,
Didion sem filtro
No vigésimo aniversário de O ano do pensamento mágico, o inédito Notes to John expõe a complexa simbiose da escritora com o marido e a filha
15maio2025 | Edição #94Joan Didion, a escritora, nasceu cult e morreu pop. Talvez porque, a partir de O ano do pensamento mágico, as circunstâncias de Joan Didion, a mulher, a tenham aproximado involuntariamente de um público, amplo, que até então lhe fora estranho. Naquele duro relato sobre um trabalho de luto, lançado há exatos vinte anos, as elipses e o proverbial distanciamento, assinatura de ensaios e romances de imenso prestígio literário, dariam lugar a uma prosa mais direta, premida pela urgência dos momentos extremos.
No penúltimo dia de 2003, John Gregory Dunne, marido e parceiro de trabalho por quatro décadas, caiu sobre a mesa do jantar, fulminado por um infarto. O casal acabara de voltar do hospital onde a filha única, Quintana, sofria numa uti as complicações decorrentes de alcoolismo e depressão. Nos meses seguintes, Didion mergulha no livro que em 2005 ganharia o National Book Award de Não Ficção. A filha, porém, não chegaria a lê-lo: em agosto daquele ano, menos de dois meses antes do lançamento, ela sucumbe, com 39 anos, a uma pancreatite. No final de 2011, Didion rememora a complicada relação com Quintana em Noites azuis. Foi o último livro que escreveu e publicou em vida.
O livro reproduz as 150 páginas com o relato de sessões que Didion manteve com o psicanalista

A sombra desta tragédia familiar, que marcaria os anos finais de Didion e os rumos da recepção de sua obra, se estende um pouco mais a partir de Notes to John, lançado em abril pela Knopf com a fanfarra que precede os inéditos de grandes autores. A princípio, trata-se de um livro involuntário. Com mínimas intervenções editoriais, reproduz as 150 páginas numeradas, impressas e deixadas numa pasta, com o relato de 45 das mais de cinquenta sessões que, entre 1999 e 2002, Didion manteve com o psicanalista Roger MacKinnon. A análise, freudiana, corre em paralelo à terapia de Quintana, que com outro profissional tentava parar de beber e se estabilizar emocionalmente. A rigor, as “notas” são uma espécie de making of de Noites azuis e teriam Dunne como destinatário único.
Sem sentimentalismo
É bom lembrar que O ano do pensamento mágico só é o livro que é porque a alta voltagem emocional jamais descamba para o sentimentalismo. O olhar austero sobre a própria crise, desdobrado na derradeira memoir sobre a filha e a própria velhice, é o que resguarda Didion de “empatias”, “resiliências”, “superações” e outras pragas que hoje infestam a singularidade dos dramas humanos. Nesse sentido, Notes to John é um alívio: quem o escreve é uma Joan Didion sem filtro, mas não livre de elaboração.
O relato de cada sessão obedece a uma estrutura básica: alterna, com variações, um “eu disse” de Didion com o “ele disse” que precede ou justifica as falas de MacKinnon, quase sempre entre aspas. A história que se conta em duas vozes é complexa e muitas vezes desconfortável pelo nível de exposição dos envolvidos — hoje, todos mortos. A edição, de responsabilidade dos sobrinhos-herdeiros e das executoras literárias designadas por Didion, suscita uma controvérsia bizantina, de impossível resolução racional. Não é descabido especular que a publicação das notas estivesse nos planos de uma autora que chegou a incorporar um laudo psiquiátrico ao ensaio O álbum branco. Pode-se até objetar, como o fez seu biógrafo, Tracy Daugherty, que o material não estivesse “pronto”. Mais forte e pragmático na defesa da publicação é o argumento de que, desde março, estão disponíveis para livre consulta na Public Library de Nova York as 336 caixas com os arquivos literários e pessoais do casal.
Perdas
Em permanente conflito com a psicanálise, a Didion das notas é obcecada pela ideia de um suicídio iminente da filha, num estado de alerta para perdas reais e imaginárias que ela e MacKinnon concordam ser comum a pais adotivos. “Tanto você quanto John tendem a ser preocupados. Essa tendência a se preocupar já existia antes da chegada da Quintana. Mas, depois que ela chegou, todas as suas ansiedades e medos passaram a girar em torno da segurança dela”, observa o analista.
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Profissionalmente frustrada como fotógrafa, abalada depois de ter sido procurada pela família biológica, Quintana muitas vezes se sentia abandonada pelos pais, vistos como uma espécie de “monólito”, em simbiose assustadora. “Eu disse que nos tornamos profundamente relutantes em ir a qualquer lugar ou fazer qualquer coisa sem o outro”, observa Didion. “Sim, vocês estão entranhados um no outro”, observa o analista. “Isso dá uma sensação de segurança, mas também é muito restritivo. Ao que parece, é isso que faz com que Quintana às vezes se sinta uma estranha numa família de dois”.
Na prática, a infância de Quintana nada tinha de trivial, uma vez que raramente era tratada, de fato, como criança: “Nós trabalhávamos em casa, ela era filha única, não havia essa separação — adultos de um lado crianças do outro. Estávamos todos juntos nisso”. Aos três anos, a menina é testemunha de uma reunião tensa com agentes, em que se discute o cachê do casal. “‘Ela ficou preocupada com o dinheiro’, ele disse. ‘Ficou aflita com algo que não podia controlar, algo que era assunto de adultos’”. Desorganizados, Didion e Dunne jamais fazem contas ou qualquer tipo de planejamento financeiro, o que traz temores previsíveis sobre uma aposentadoria. “Eu disse que havíamos tentado abordar a questão no outono passado. Talvez o erro mais evidente tenha sido decidir fazer isso em Paris — e ainda por cima pegar o Concorde. Ele riu.”
O casal trabalhava o tempo todo — em seus projetos individuais e nos mais de vinte roteiros que assinaram juntos. Para eles não existia final de semana, não existia feriado. “Eu me sentia culpada por não me envolver, por não estar presente emocionalmente”, diz ela ao analista, reconhecendo que, de alguma forma, se isolava da filha. “Em vez de me conectar, eu trabalhava. Trabalhar, como você mesmo já apontou, era o modo que eu encontrei de não estar ali emocionalmente.”
Didion se espanta porque, no momento em que vê MacKinnon semanalmente, a grande questão é o quanto os dramas de Quintana tendem a tomar conta da vida do casal. “Toda a minha ficção durante a infância dela podia ser lida como uma tentativa de elaborar a separação antes que ela acontecesse. Eu já tinha processado tudo isso. Então por que eu não conseguia me separar?”, especula. “Separação tem tudo a ver com envolvimento, ele disse. Você tem dificuldade em se envolver. Talvez tenha lidado com ela a distância. Eu disse que lido com todo mundo a distância.”
‘Notes to John’ é o arremate de uma longa história sobre as fantasias de manter sob controle obras e biografias
Ao relatar como aconselhou Quintana a se livrar de relações abusivas cada vez mais frequentes a partir dos excessos do álcool, Didion expõe em Notes to John um dos dois fatos até então desconhecidos de sua biografia. O “alguém destrutivo” que ela não nomeia — e a edição sequer informa nas poucas e reticentes notas — é Noel Parmentel Jr., “oito ou nove anos” mais velho, com quem manteve um namoro tumultuado e, ao que tudo indica, importante nos anos de formação: “a pessoa em questão era muito inteligente, e acreditava que eu também era muito inteligente — o que, numa fase insegura da minha vida, teve um valor imenso. Mas essa pessoa também era profundamente autodestrutiva, bebia demais”.
Foi Parmentel quem apresentou Didion a Dunne e mais tarde a ameaçaria com um processo por se reconhecer num personagem do romance A Book of Common Prayer (1977). No recente Didion & Babitz, que traça paralelos entre a autora de Rastejando para Belém e Eve Babitz, a jornalista Lili Anolik destrincha essa relação sem dispor da informação que só agora vem à luz: “‘Ele chegou a bater em você?’, perguntou o dr. MacKinnon. Eu disse sim”.
Tampouco era conhecido que o diagnóstico e o tratamento de um câncer de mama foi mantido estritamente entre Didion e Dunne por cinco anos. “‘Você deve ter ficado com medo’, ele disse. Não, eu disse. Sinceramente, não fiquei. Minha reação inicial foi achar aquilo ridículo, isso não pode estar acontecendo comigo, porque nem seios eu tinha”. Ao analista, Didion diz só ter chorado, “por cerca de dez segundos”, duas vezes:
Acho que foi mais por frustração: algo tinha escapado ao meu controle, algo que ia ser um enorme incômodo, algo que, além disso, poderia ser desastroso para nosso sustento. Depois que percebi que isso poderia ser resolvido sem ameaçar nosso modo de vida, nunca mais me incomodou. Exceto por um aspecto: passei a ver a própria solução — o sigilo — como o único dano residual. Isso acabou por me isolar — nos isolar — ainda mais das outras pessoas.
As reservas sobre expor sua vida pessoal iriam esvanecer lentamente depois das mortes de Dunne e Quintana. Em 2015, a meses de completar oitenta anos, Didion foi modelo da Céline, posando com enormes óculos escuros, uma de suas marcas registradas, para a coleção primavera-verão da marca. Dois anos depois, a Netflix estrearia Joan Didion: The Center Will Not Hold, documentário dirigido por Griffin Dunne, seu sobrinho, que dentre outros méritos, é um registro precioso de longos depoimentos.
Depois de sua morte, em 2021, os herdeiros fizeram um leilão de todos os objetos do apartamento em que ela vivia com Dunne. Pretendiam arrecadar 400 mil dólares; apuraram quase dois milhões. Os óculos Céline alcançaram 27 mil dólares. A mesa de trabalho, 60 mil. Um lote de cadernos de notas foi arrematado por 9 mil dólares — todos eles imaculados, em branco.
Notes to John é o arremate — o derradeiro? eu não arriscaria — de uma longa e exemplar história sobre as fantasias de manter sob controle obras e biografias. Tem o valor e o mérito de funcionar como uma tentativa de âncora, cujo peso vem de doses brutais de humanidade, que desafiam até as imagens edulcoradas da maternidade. “Eu disse achar que nós dois estávamos sentindo a pressão do tempo. De não ter tempo para fazer o que realmente importava para nós. De estarmos escrevendo filmes quando deveríamos estar fazendo as coisas que queríamos fazer”, observa Joan Didion. “E que, toda vez que pensávamos que talvez conseguíssemos nos livrar das nossas obrigações — Quintana entrava em cena. E que, às vezes, eu não conseguia deixar de sentir um certo ressentimento.”
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.
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