Paulo Roberto Pires
Crítica cultural
Anatomia do futuro
Ao escrever sobre o pai e a mãe, Édouard Louis sublinha a energia revolucionária da mobilidade social
10ago2023 | Edição #73A mudança é valor ambíguo. Fundamento da revolução, motor idealizado das paixões arrebatadoras, é também atraente mercadoria de autoajuda. Na política, conservadores e progressistas disputam-na para que jamais aconteça de fato. Exigente, a mudança pode se confundir com a simples vontade de mudar, essencial porém insuficiente. Quando em marcha, é irreversível. Alimentada, contagia. Pode até não transformar o mundo, mas reconfigura vidas.
São os matizes individuais e coletivos da mudança que dão forma e substância a Quem matou meu pai (2017) e Lutas e metamorfoses de uma mulher (2021), lançados recentemente no Brasil. Breves e devastadores, no trânsito entre autobiografia e ensaio, os livrinhos lembram que, aos 31 anos, Édouard Louis está inteiramente livre dos elogios condescendentes que o saudaram como um enfant terrible ao estrear na literatura, em 2014, com O fim de Eddy. Escrevendo para teatro e atuando, em ativa participação nos debates públicos ou como tradutor da poeta Anne Carson, Louis é hoje um dos intelectuais mais contundentes na recusa do mundo miserável oferecido pelas políticas de consenso.
“Não se deve ver no que escrevo a história do nascimento de um escritor, mas do nascimento de uma liberdade, da ruptura, a qualquer preço, com um passado detestado”, adverte ele em Changer: méthode (Mudar: método), longo e denso ensaio, a ser lançado pela Todavia, em que explicita as motivações de sua obra.
Exigente, a mudança pode se confundir com a simples vontade de mudar, essencial porém insuficiente
O passado por ele “detestado” é o que a decência manda recusarmos: uma família estropiada pela pobreza e o álcool; uma cidade periférica abandonada à própria sorte no norte da França; a homofobia ostensiva; a institucionalização da violência pela extrema direita.
As versões domesticadas da existência poderiam fazer da história de Louis um episódio de “superação”, palavra de ordem da empatite contemporânea. À resistência conformada, Louis preferiu o enfrentamento — “a violência foi o que nos salvou da violência”. E, na refrega, cortou o mal pela raiz. O fim de Eddy narra precisamente o rompimento com pai, mãe, irmãos, colegas de escola, ignorância, obscurantismo e até com o registro civil, na mudança do próprio nome.
Rupturas
O homem com quem Louis se reencontra em Quem matou meu pai é uma ruína. Separado de sua mãe, respira com dificuldade e mal se locomove em consequência de um acidente de trabalho. Nasceu em 1967. A política pública de extermínio de benefícios — e beneficiários — acelerou sua demolição, que vem de longe. Foi cevada por um machismo patológico, que começa na obsessão em deixar a escola rápido para se debater num mundo competitivo e sem sentido onde deveria constituir família e criar filhos.
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“Construir sua masculinidade significava se privar de outra vida, de outro futuro, de outro destino social que os estudos poderiam permitir”, escreve Louis, que também anota a generosidade episódica do pai alcoólatra e os momentos inquietantes em que, vidrado diante da televisão, parecia se emocionar com uma ópera. “A masculinidade”, observa, “o condenou à pobreza, à falta de dinheiro. Ódio da homossexualidade = pobreza”.
Louis era a vergonha da família. O “viado”, cheio de “trejeitos”, era bom aluno — e escondia isso dos pais. Mesmo acossado pelo bullying na escola, era nos estudos, na formação intelectual, que via uma hipótese viável e concreta para romper com a moral rombuda que o submetia e infelicitava. “Com nove, dez anos, eu já conhecia o gosto da melancolia e do desespero”, escreve ele em Lutas e metamorfoses de uma mulher, que é dedicado à mãe.
Humilhada e maltratada pelo marido e pela vida, ela tampouco estabeleceria com Louis uma relação saudável. Tinha dois filhos de um casamento anterior — igualmente infeliz — e, impedida de abortar pelo marido, ainda seria mãe de gêmeos. Criada para ser “tudo o que se esperava de uma mulher”, anulou-se numa relação violenta, seguindo a cartilha da cidade onde vivia: “Os homens bebiam e as mulheres tentavam impedir o marido de beber”. De quando em quando, subvertia as regras em porres que envergonhavam o filho.
Não há um improvável final feliz, próprio do relato narcisista dos que ‘venceram’
Depois do acidente do marido, que sempre a impediu de trabalhar, garantia o sustento da família dando banho em idosos da vizinhança. “Passaram diretamente da pobreza para a miséria”, observa Louis. Aqui e ali, dava sinais de inconformismo, de que sua vida era mais provisória do que parecia. Num raro e curto período de férias familiares, deixou escapar: “Está vendo, fico bem menos estressada e bem mais gentil quando estou sem seu pai; é ele que faz com que eu seja má”.
Se Quem matou meu pai é o necrológio da dignidade de um homem, Lutas e metamorfoses de um mulher fala do rompimento possível com o imobilismo. O que faz a clivagem entre o passado e os futuros é precisamente a mudança de Louis. Quando o filho deixa a casa para seguir os estudos no ensino médio em outra cidade, a tensão se intensifica — “o outro depois que foi para o Liceu pensa que é melhor do que nós”. Mais do que atiçar o ressentimento, a distância de Louis instiga a separação libertadora. A mudança contagia a mãe.
“Como em todas as metamorfoses, o desenrolar da sua forjou-se num encontro”, conta Louis. Numa festa, a mulher que sempre fora proibida de usar maquiagem encontra um homem com quem inicia, relutante, um relacionamento — e por quem aos poucos se apaixona. Troca Hallencourt por Paris, onde passa a viver com seu novo companheiro, zelador de um prédio na vizinhança de Catherine Deneuve, uma das atrizes de sua vida. Aos poucos, estabelece nova relação com o mundo e, em outras bases, com o filho.
Não há aqui um improvável final feliz, próprio do relato narcisista dos que “venceram”. Édouard Louis filia-se diretamente à linhagem de autores franceses que, nascidos nas classes populares, fizeram da mobilidade social uma narrativa coletiva de politização e até mesmo de vingança. Louis despertou intelectualmente depois de uma conferência de Didier Eribon, com quem vive há dez anos numa amizade a três que inclui Geoffroy de Lagasnerie — no ensaio “3 – Une aspiration au dehors” (3 – Uma aspiração ao de fora), lançado em março, o sociólogo reflete sobre o relacionamento com Eribon e Louis como uma possibilidade “fora” dos quadros da família.
Por sua vez, Eribon, que acaba de publicar um livro sobre a mãe, Vie, vieillesse et mort d’une femme du peuple (Vida, velhice e morte de uma mulher do povo), tem como referência importante Annie Ernaux, presença marcante em Retorno a Reims e ostensiva em A sociedade do veredito. Antes e acima deles e da Nobel de Literatura de 2022, está, como influência comum, Pierre Bourdieu e suas decisivas e detalhadas análises sobre a dominação de classes.
Mecanismos complexos, a transmissão e a influência poderiam ser resumidas na fala de Louis destacada pelos trailers de Édouard Louis ou la transformation, documentário de François Caillat que entra em cartaz na França em novembro: “A cada vez que alguém diz ‘eu mudo’, dá-se a possibilidade de que alguém diga ‘eu quero mudar’”.
Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.
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