Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Um caminho no meio da pedra

Em alguma semelhança com Sísifo, padre Júlio Lancellotti repete todos os dias seu trabalho de lutar por quem é visto pelo mundo como descarte

19maio2023 | Edição #70

Centenas de paralelepípedos pontiagudos foram implantados pela gestão municipal de São Paulo, então sob o comando do prefeito Bruno Covas, na parte de baixo de dois viadutos que cortam a avenida Salim Farah Maluf, uma das mais importantes da Zona Leste e da cidade. Não é incomum que pedras sejam utilizadas como elementos integrantes do calçamento — do padrão inconfundível das pedras portuguesas pretas e brancas do calçadão de Copacabana até as fileiras menos memoráveis de paralelepípedos que compõem a pavimentação de algumas áreas de São Paulo onde o concreto ainda não é dominante. 

Mas, nesse caso, não estávamos diante de uma operação de melhoria da infraestrutura urbana. As pedras não foram niveladas e alinhadas no chão para serem cobertas com argamassa. Foram fixadas com cimento ao solo na vertical, como lanças, com algum distanciamento entre elas. A imagem mais próxima talvez seja a de um colchão de pedras, à semelhança de uma cama de pregos de um faquir. Distantes o suficiente para perder qualquer função de calçamento e próximos o bastante para que nenhuma clareira pudesse ser aberta entre eles, os blocos irregulares tinham apenas uma função: evitar pessoas em situação de rua.

Ao final do século 19, o escritor francês Anatole France afirmava, em O lírio vermelho, que a lei, na sua majestosa igualdade, permitia tanto ao rico quanto ao pobre dormir sob as pontes. O sarcasmo estruturava a crítica direcionada aos limites da igualdade jurídica formal, que desconsiderava assimetrias sociais estruturais, tratando os sujeitos como desencarnados. Na São Paulo do final de 2020, as centenas de pedras sinalizavam que nem mesmo a insuficiente igualdade formal estava assegurada. Há poucas coisas mais abjetas do que negar expressamente um espaço embaixo da ponte — ou do viaduto — a quem já tem tão pouco. A ação já seria reprovável sob qualquer circunstância, mas é preciso lembrar do momento em que aconteceu, que não é um mero agravante. Foi no final do primeiro ano da pandemia, quando a vacinação ainda era parte do futuro incerto e ter onde se abrigar, ainda que de maneira precária, passou a ser ainda mais determinante para a sobrevivência.

Marreta em mãos

No dia 2 de fevereiro de 2021, após denúncias, a prefeitura deu início à remoção das pedras. “Eu peguei a marreta emprestada de um dos rapazes que estavam fazendo o serviço e arranquei algumas pedras. Minha denúncia silenciosa, mas contundente, por meio das marretadas, repercutiu de tal forma que ajudou na remoção das pedras, pondo fim a uma obra insana, desumana.” O ato simbólico de padre Júlio Lancellotti contra mais um episódio de higienismo na cidade que já implantou os mais diferentes dispositivos de exclusão — como rampas “antimendigos”, operações de retirada de cobertores no frio, jatos d’água e confisco sistemático de barracas, apenas para citar alguns — cristalizaria uma imagem: um homem sozinho, já com cabelos brancos, um jaleco também branco e avental amarelo com referência a irmã Dulce dos Pobres, munido de uma marreta pesada, luvas e máscara, diante de uma fileira de centenas de pedras-lança. Tinha um caminho no meio da pedra.

Padre Júlio Lancellotti dedica sua vida a lutar pela dignidade de todos aqueles e aquelas que são vistos pelo mundo como descarte. 

Os moradores de rua são indesejados. Não são esperados por ninguém. Ninguém diz para eles: “Que bom que você chegou, estava com saudades, queria te ver, onde você estava que não te achei, que não te vi?”. Ninguém se importa com eles, a não ser que estejam incomodando.

É o que narra em Tinha uma pedra no meio do caminho, livro que combina os relatos de sua atuação histórica como vigário episcopal para o povo de rua e pároco da igreja São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, com o agravamento da crise social na pandemia. “Além do sofrimento social, as pessoas em situação de rua têm que sobreviver ao poder público”, em uma luta pela garantia das condições mínimas de existência.

Há poucas coisas mais abjetas do que negar um espaço embaixo da ponte a quem já tem tão pouco

Em alguma semelhança com Sísifo, padre Júlio repete todos os dias seu trabalho de rolar a pedra montanha acima, o que concretamente significa atender homens e mulheres em situação de rua e exigir que o poder público não viole seus direitos. “Minha luta é um ato de resistência, mas não posso negar: um mundo assim cansa.” Em Amor à maneira de Deus, em que interpretações de passagens bíblicas são entrelaçadas com cenas pessoais em defesa dos direitos humanos, ele explica: 

Minha luta é a de quem vai perder. Nunca será a luta de quem vai ganhar. Mas não luto para ganhar, e sim para ser fiel. Para mim, isto sempre foi fundamental: não é pela força, não é pelo poder, pois eles não mudam nada.

Ficar ao lado dos perdedores é olhar o mundo — e a cidade — a partir da calçada, a partir de quem dorme na rua deitado no papelão. Ambos os livros são alentos em tempos difíceis, mas também chamados para a ação responsável. Travar a luta de quem vai perder está longe de significar que é uma batalha em vão. Pelo contrário, há muito a ser feito para que as cidades sejam menos brutais com as pessoas mais pobres, o que vai desde a discussão, liderada por padre Júlio, sobre a arquitetura hostil até políticas públicas de habitação que coloquem a dignidade no centro dos debates. Há caminho em meio a pedras, ainda que elas tenham que ser quebradas a golpes de marreta.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.