Uma cidade sem lugar

As Cidades e As Coisas,

Uma cidade sem lugar

Em Estive em Horroroso e lembrei de você, Rafael Sica desenha um município bastante comum a todos nós, mas evitado pelo cinismo do território-produto

01jun2025 • Atualizado em: 29maio2025 | Edição #94

O que é uma cidade? Em Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela, a poeta e dramaturga Leda Maria Martins conta que, em um antigo registro da sabedoria tolteca, uma cidade não começava com a finalização de habitações, templos e ruas, mas quando os cantos e as músicas eram ouvidos e os tambores rufavam. “Fundava-se, assim, o lugar e a civilização”, escreve ela. Passear por Horroroso, município fictício mais próximo da nossa realidade do que gostaríamos, desenhado pelo artista e quadrinista Rafael Sica em seu mais recente livro, desperta essa e outras questões. Tem cidade sem lugar, sem relação consciente com o espaço? O que os escombros (materiais e simbólicos) dizem?

Foi por acaso, mas não desatento, que em 2020, durante a pandemia de Covid-19, o autor se descobriu em Horroroso passeando pelo município em que vive, Pelotas (RS) — que poderia ser tantos, ou quase qualquer outro afetado pela calamidade. Começou a desenhar a partir de elementos e situações que lhe chamavam a atenção. Na época, conversava com a poeta Angélica Freitas sobre enviar desenhos para que ela escrevesse algo a partir deles, e passou a pensar mais sobre temas como pertencimento, identidade, família, olhando para fotografias antigas, para o cotidiano e o noticiário. “E começou a surgir esse cenário naquele momento estranho”, conta.

Em pouco tempo tinha mais de cinquenta desenhos. Famílias fazendo compras no mercado em uma cidade em ruínas, nadando em um rio poluído ou fazendo piquenique ao lado de um monte de lixo, crianças olhando apáticas para uma tela em uma casa aos pedaços, monoculturas no campo, construções destruídas e portões arrancados vão surgindo nas páginas pintadas por ele. Mais do que cenários, os desenhos trazem em sua riqueza de detalhes uma série de informações que nos conectam a diversas tragédias atuais: dos impactos de uma pandemia a inúmeros casos de desmatamento, queimadas, enchentes e outros tantos crimes ambientais. Também nos levam a tragédias acomodadas na normalidade das cidades, como a falta de moradia e o anestesiamento de uma rotina burocrática, utilitarista. Impossível passear por Horroroso e não pensar que já estivemos ali, nos vários lugares que parecem ter sido atropelados pela super-exploração capitalista.

O artista conta que já tinha terminado o livro quando ocorreram as enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul. Como tantas famílias, foi impactado e teve de deixar sua casa, alagada, por um período. Viu-se, mais uma vez, em Horroroso. Surgiram novos desenhos. “Tem essa onda de falar de um lugar pós-apocalíptico ou distópico, mas a gente está vivendo exatamente isso, então não vejo o livro como se fosse uma intenção poética de tentar agravar uma situação, porque essa situação já está nos nossos olhos”, diz ele. 

Sica usa um formato narrativo de publicação clichê de turismo, que remete ao cinismo com o qual muitas prefeituras escondem problemas e buscam vender suas cidades, empacotando-as como um produto, não importa o momento que se vive. As mais de cem ilustrações são como cartões-postais, a divisão de capítulos é com títulos como “Nossa força” e “Nossa história”, habitual em sites oficiais, e há também uma planta da cidade, um brasão e um posfácio assinado pelo arquiteto e urbanista Ricardo Luis Silva emulando um relato turístico. “O município de Horroroso agradece a sua visita”, escreve Sica nas primeiras páginas, que trazem o letreiro instagramável com o nome da cidade.

Atração

Duas reportagens me vieram à mente folheando o livro, ambas relacionadas à nossa ideia de pertencer a um espaço, de constituir nele um “lugar”. Em 2019, moradores se indignavam diante de uma proposta de transformação de Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana (MG) devastado pelo rompimento de uma barragem da Vale em 2015, em um museu a céu aberto. Protestavam a perda do direito ao território e à memória, como noticiou a Agência Pública. Estavam ainda sem indenização e um reassentamento digno, vendo a possibilidade de sua história virar uma atração. 

Já em 2024, outra reportagem registrava os esforços de vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul para resgatar pedaços importantes de suas vidas nos escombros: fotografias e objetos pessoais simples, mas constituintes de suas existências e identidades. Os relatos foram publicados pela Deutsche Welle no UOL. Em Horroroso, em muitos momentos as pessoas parecem ter sido desterritorializadas, como se algo tivesse passado por ali e arrancado sentidos importantes. Ou então estar resistindo a processos de desterritorialização, como em tantas partes do Brasil de hoje — e de sempre.

Entre a pretensa normalidade e o horror, o livro de Rafael Sica ressalta o poder do cotidiano: nada é banal, o que parece trivial tem profundidade. Se nesse cotidiano percebemos a alienação das pessoas e o descaso do poder público, nele notamos também, nas brechas, a luta pela sobrevivência, uma troca de olhares com afeto, um encontro. O cotidiano como resíduo e como produto, como diz o sociólogo francês Henri Lefebvre. “Tem a questão da rotina que é como um ritual que você faz independente de qualquer coisa. A cidade pode estar despedaçada, mas a rotina ainda existe como uma maneira de troca entre as pessoas, não só essa coisa de ir pra escola ou pro trabalho, mas nas relações. É como se ela fosse importante para nossa existência”, reflete o artista.

Autor de títulos como Fachadas (Lote 42, 2017) e Ordinário (Quadrinhos na Cia, 2011), Sica já vinha olhando para o vínculo das pessoas com as cidades há bastante tempo. Com o novo livro isso ficou mais explícito. “Não tem tanto espaço para a sugestão como tinha em outros trabalhos meus, esse é mais direto”, diz. Para ele, por mais que Horroroso esteja tão perto e estejamos tão longe do ideal para os municípios, não há outra saída que não seja a partir das políticas públicas, do diálogo e da democracia. 

Estive em Horroroso e lembrei de você traz no título a provocação: essa cidade faz lembrar todos nós.

Quem escreveu esse texto

Adriana Terra

É jornalista e mestra em filosofia.

Matéria publicada na edição impressa #94 em junho de 2025. Com o título “Uma cidade sem lugar”

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