Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

O fim das aglomerações

Como a pandemia da Covid-19 impacta a economia de compartilhamento e ameaça o Airbnb

11maio2020

As primeiras ondas da economia digital pareciam levar a aniquilação do espaço pelo tempo à última potência. Passava a ser possível trabalhar, fazer compras e acessar informações de qualquer lugar. Uma ampla rede de conexões garantia as condições tecnológicas para esta aceleração. Ao mesmo tempo em que estas operações se tornavam mais velozes, o espaço parecia se tornar irrelevante. O que comumente chamamos por economia do compartilhamento vai no sentido contrário. Não que haja menos tecnologia ou menos aceleração. O ponto é que o espaço se torna explicitamente central.

De maneira mais precisa, é o espaço urbano que volta a ser decisivo. Nestor Davidson e James Infranca chegam até mesmo a classificar a economia do compartilhamento como um “fenômeno urbano”. Isso porque algumas condições urbanas são indispensáveis para o funcionamento de plataformas como Uber e Airbnb. Aglomeração é certamente a palavra-chave. Mercados de duas pontas que conectam passageiros e motoristas ou hóspedes e anfitriões exigem que estas pessoas estejam concentradas no território. Poucos urbanistas discordariam de que cidades são, antes de tudo, aglomerações.

Airbnb e Uber dependem das cidades ao mesmo tempo em que reconfiguram a geografia urbana. É também exatamente por isto que estes modelos de negócio estão sendo duramente impactados em um momento de pandemia em que são as próprias aglomerações que estão em xeque. A impossibilidade de cruzar fronteiras em viagens colocou o Airbnb no centro da crise. Não é por outra razão que matérias em diversos jornais se perguntam como será possível salvar o unicórnio desta vez.

Viaje como humano

No dia 26 de março, Brian Chesky, cofundador do Airbnb, tinha boas notícias para contar em sua conta no Twitter. Logo após o Airbnb anunciar um programa para abrigar pessoas que estão na linha de frente do combate à Covid-19, quinhentos anfitriões – termo que a plataforma dá para aqueles que anunciam quartos ou unidades inteiras no site – haviam se voluntariado para abrir suas casas ao redor do mundo, especialmente para abrigar profissionais da saúde. O Airbnb deixaria de cobrar a taxa para as primeiras 100 mil reservas e as unidades teriam que seguir um protocolo específico de higiene. Caberia aos donos decidirem o valor da hospedagem. No dia 3 de abril, mais um tweet efusivo: o projeto #FrontlineStays havia chegado a 100 mil voluntários.

Após esta data, não houve mais atualizações sobre o programa, seja pelo CEO da empresa ou por parte do perfil oficial do Airbnb. Um pouco mais de um mês depois, no dia 6 de maio, Chesky não tinha boas notícias para compartilhar: 1.900 pessoas acabavam de ser demitidas da empresa, o que representa 25% do número global de funcionários, seguindo diversas start-ups unicórnios que também haviam feito demissões em massa. Em sua mensagem à comunidade, Chesky afirma que não é possível prever se e quando o turismo retornará aos patamares anteriores à pandemia. E que este seria o momento para voltar o foco do negócio ao intuito original: “Nossa missão não é apenas sobre viagens. Quando começamos o Airbnb, nosso slogan inicial era ‘viaje como um humano’ [travel like a human]. A parte humana sempre foi mais importante que a parte da viagem. O que nós somos tem que ver com pertencimento e o amor está no centro do pertencimento.”

Por mais importante e bem-intencionada que a política de ajuda promovida pelo Airbnb tenha sido, muita gente se sentiu excluída do pertencimento.

No início de abril, o Airbnb lançou um fundo de ajuda aos superhosts. Para receber o qualificador de “super” é preciso fazer mais de dez transações por ano, responder rapidamente às perguntas dos hóspedes e ser bem avaliado. Os superhosts seriam os mais impactados com a queda vertiginosa de reservas em todo o mundo – a frequência indicaria que grande parte de seus orçamentos viria dos aluguéis de curto prazo intermediados pela plataforma. Mas o dinheiro do fundo não veio da empresa Airbnb. Os 17 milhões de dólares foram arrecadados de doações pessoais dos fundadores, no valor de 9 milhões de dólares, outros 7 milhões de investidores e 1 milhão de doações de funcionários – parte dos quais foram demitidos no início de maio.

Nove milhões de dólares dos bolsos dos fundadores pode parecer muito. Mas, se supuséssemos que esta doação tivesse vindo unicamente de Chesky, isto representaria uma parcela ínfima de sua fortuna de 4,1 bilhões de dólares avaliada pela Forbes em maio deste ano. O tamanho da sua fortuna é lembrado diariamente por usuários do Twitter nos comentários feitos no perfil do CEO. Por um lado, anfitriões se sentiram lesados com a política de reembolso total das reservas feitas antes do dia 14 de março – uma política que não veio sem hesitações por parte da empresa. Anfitriões que não são “super” não puderam se candidatar à ajuda do fundo. Além disso, as reclamações no Twitter também indicam que muitos hóspedes receberam reembolsos apenas parciais, mesmo sem poder viajar. Ambas as pontas foram impactadas com o fato de o Airbnb se apresentar como um mero intermediário das relações, o que exclui sua responsabilidade nestas transações.

Oferta de aluguéis

Em muitas cidades, já é possível perceber um movimento de reconversão de apartamentos que estavam no Airbnb para o aluguel residencial de longo prazo. Em Londres, o site Rightmove registrou um aumento de 45% em novas unidades para aluguel de longo prazo em março deste ano, se comparado com o ano anterior. Uma dinâmica semelhante já acontece em outras cidades europeias, como Madri, Sevilha e Dublin, por exemplo. Em muitos casos, a reconversão é apenas parcial, uma vez que os anúncios indicam que a locação tem data expressa para terminar, ainda em 2020, o que indica uma aposta na volta do turismo em breve.

Por mais que seja possível perceber transformações como estas, o site AirDNA, que sistematiza dados sobre as reservas do Airbnb ao redor do mundo, indica que a oferta de unidades na plataforma praticamente não foi afetada. Isto significa que, por mais que a demanda por reservas tenha caído de maneira significativa em razão da pandemia, os anfitriões não retiraram os anúncios de suas unidades do ar. Não é possível estimar quantas destas unidades foram alugadas em regimes tradicionais de aluguel de longo prazo. Mas não é muito errado assumir que grande parte delas está, neste momento, vazia.

Saber o tamanho do problema envolve ter dados precisos que apenas o próprio Airbnb poderia fornecer – há alguns anos a cidade de Nova York vem travando uma batalha jurídica contra a empresa justamente para obter estas informações. O site InsideAirbnb faz um cálculo independente do número de unidades ofertadas na plataforma.

Os dados para Milão, uma das cidades mais afetadas pela pandemia, são bastante recentes, de abril deste ano, apontando para a existência de 17,659 unidades listadas na plataforma, sendo 72,5% unidades inteiras, a maioria concentrada em áreas centrais da cidade. Os dados para Nova York, outro epicentro da pandemia, também são de abril: são 50,378 unidades, sendo um pouco mais de metade delas para apartamentos inteiros, com concentração em Manhattan e no Brooklyn. A única cidade brasileira disponível nesta listagem é o Rio de Janeiro, com informações atualizadas para o dia 20 de abril: estamos diante de 35,887 unidades, sendo 71,4% de apartamentos ou casas inteiros.

A oferta massiva de aluguéis de curto prazo via Airbnb é um problema para cidades. Seria possível explica-lo de várias maneiras, seja olhando para como o Airbnb deixou de ser uma atividade de pessoas que queriam alugar seus quartos vazios para se tornar um negócio com grandes proprietários de imóveis, seja da perspectiva das dinâmicas de expulsão de moradores fixos de áreas de centralidade. Como as regras da plataforma são mais flexíveis e como residentes temporários tendem a pagar mais pela estadia do que residentes fixos, é mais vantajoso alugar por um curto tempo pelo Airbnb do que anunciar o imóvel para locação de longo prazo. Os efeitos desta dinâmica já podem ser sentidos em diversas cidades ao redor do mundo.

A substituição de populações tem levado à diminuição da oferta de casas e apartamentos no mercado de locação de longo prazo em áreas bem consolidadas da cidade. Muitos afirmam que a plataforma é também uma das responsáveis pelo aumento do preço dos aluguéis nestas centralidades. Quem mora na cidade tem que se mudar para mais longe se não puder acompanhar a dinâmica de preços, deixando os centros bem localizados para turistas. Além disso, o Airbnb não diferencia entre empresas e pessoas físicas – um levantamento feito pelo jornal Folha de S.Paulo em 2019 mostrou que, no Rio e em São Paulo, os maiores anunciantes da plataforma são empresas que chegam a gerir quase uma centena de imóveis.

O modelo já sofria duras críticas antes do surto do novo coronavírus. A pandemia esgarçou as desigualdades urbanas que serviam de sustentação ao Airbnb. Se muitas cidades mostraram que não conseguiriam aguentar o crescimento exponencial do turismo impulsionado pelo aumento dos aluguéis de curto prazo por meio da plataforma, manter estas unidades vazias enquanto uma parcela significativa da população não tem condições mínimas de isolamento na pandemia tampouco é razoável.

O Airbnb e o compartilhamento de moradia certamente terão que se reinventar. O pós-pandemia já está sendo construído agora, durante o período de quarentena. Para além de reinventar o negócio, é preciso olhar para o impacto de longo prazo nas cidades. Diferenciar usuários individuais de empresas seria um grande passo para a plataforma. Outro passo seria limitar o número de unidades inteiras oferecidas. Para as cidades, também é fundamental ter o controle destes dados. Algumas cidades já estão esboçando reações: Barcelona e Paris querem retomar o controle destas unidades, por meio de uma regulação mais restritiva de licenças para aluguéis temporários.

Se a economia do compartilhamento é um fenômeno urbano, é preciso que as cidades voltem para o centro deste debate. Se não se trata apenas de turismo, como diz Chesky, mas da “parte humana” e de “pertencimento”, então isto deve ser estendido a todos. Especialmente àqueles que não são hóspedes ou anfitriões e que mais têm a perder com o aprofundamento das desigualdades urbanas nesta crise.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).