Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Espanto e fascinação no centro
Jacaré passeia por São Paulo e descobre as camadas históricas da capital — e nos convida a seguir seus passos em livro que reúne história, roteiro e mapa
27set2023 | Edição #74Um jacaré de um tom vermelho meio alaranjado, quase coral, com escamas e dentes afiados, mas nada amedrontador, olha para o céu em sinal de profundo tédio. Quem o visse rodeado por tartarugas e ao lado de girafas, zebras e rinocerontes, poderia imaginar que estamos diante de uma selva. Mas há grades entre os animais, as cercas limitam seus movimentos e seus horizontes. “Eu quero desbravar o mundo, conhecer outros bichos e lugares!”, diz o jacaré. O espaço confinado do zoológico passa a ser percebido por ele pelo que realmente era: estreito e aprisionador.
Somos então levados a compartilhar seus planos de fuga: “O jacaré decidiu mergulhar o mais fundo que conseguia, pois pensava melhor com a cabeça embaixo da água. E, sem perceber, entrou pelo cano que drenava a água do seu tanque. Nadou, nadou, nadou por muito tempo ainda pensando em como conhecer o resto do mundo”.
O animal estranha as grades, o barulho e os humanos não prestarem atenção nele — nem em nada ao redor
A primeira chegada foi repleta de frustrações. A água turva e lamacenta do rio Tietê, canalizado, era muito diferente do que ele imaginava. E, para além da barragem, havia animais estranhos que passavam em alta velocidade, com sons furiosos. Os bichos incomuns que nunca havia visto antes eram carros, caminhões e motocicletas. O olhar de estranhamento do jacaré é um convite delicioso para deslocar a perspectiva do que já está incorporado como natural na vida das cidades — e é desse lugar que vamos acompanhar sua aventura pelo centro da capital paulistana, aonde o personagem chega depois de muito nadar por águas inóspitas.
No vale do Anhangabaú, as pessoas passando pelo viaduto Santa Ifigênia são “formigas andando no tronco amarelo”. Edifícios icônicos como o Martinelli e o Altino Arantes são vistos como “árvores superaltas” que, da perspectiva do nosso guia, “devem estar cheias de ninhos de passarinhos ou de morcegos dormindo durante o dia”. As formas homólogas às da floresta emprestam outras funções às estruturas urbanas; só criaturas que voam poderiam habitar espaços tão elevados. Ele também estranha tantas grades, o barulho e o fato de que os humanos que ele encontra não prestam atenção nele — e nem mesmo em nada ao redor, capturados pelas “coisinhas brilhantes que carregam nas mãos”.
O encontro com a pomba é um marco na aventura pelo centro. Além de ser a maior conhecedora do território, ela abre acesso a um olhar de sobrevoo que, do chão, o jacaré não consegue acessar. É a pomba que explica que ele está em um triângulo: “Se você conseguisse voar como eu, veria que há três igrejas que formam o Triângulo Histórico”. Nessa parte, as ilustrações de Mariana Zanetti são de tirar o fôlego: alternam entre a perspectiva do alto (das pombas) e os prédios vistos de baixo (pelo jacaré). Tal como uma criança pequena, o personagem olha para cima com uma visão distinta da de um adulto e assim aprende a ver essa parte de São Paulo com um misto de espanto e fascinação.
Expedição
O jacaré fujão no Triângulo é um convite a explorar a cidade com as crianças. Além da história, o livro de Sabrina Fontenele traz, ao final, um roteiro com todas as referências que aparecem na trama. Construções como o Mosteiro de São Bento, ruas como a Quinze de Novembro e estátuas como a do Zumbi dos Palmares ganham data, contexto e significado histórico para apresentar às crianças as diversas camadas de tempo e de sentido contidas no passeio.
O jacaré fujão no Triângulo, de Sabrina Fontenele, é um convite a explorar a cidade com as crianças
Outras colunas de
Bianca Tavolari
Há ainda um encarte com um mapa — que pode (e deve!) ser destacado para refazer o passeio do jacaré — no qual é possível reconhecer passagens do livro nas ilustrações e, assim, conectar a narrativa com um trajeto feito com os próprios pés.
Sair do vale do Anhangabaú, passar pela praça Antônio Prado e pelo Largo do Café em direção ao Pateo do Collegio rumando, por fim, para a praça do Patriarca, deixa de ser apenas uma caminhada por ruas antigas da cidade, que pode ser tanto acolhedora quanto hostil. O livro convida a abrir o olhar para as referências históricas e simbólicas, mas também para as relações entre as pessoas ao nosso redor.
Além da grande aventura de um jacaré em sua relação com o espaço urbano desconhecido, Sabrina Fontenele e Mariana Zanetti nos presenteiam com mais do que um livro — história, roteiro e mapa se complementam para levar pequenas e pequenos a explorarem a cidade, com uma pesquisa urbanística de alta qualidade. Que sorte a nossa poder reproduzir os passos do jacaré fujão no Triângulo — e poder experimentar novas rotas e novas relações com a cidade.
Matéria publicada na edição impressa #74 em setembro de 2023.
Porque você leu As Cidades e As Coisas
Piloto automático
Fruto de conversa entre jornalista e especialista em planejamento urbano, Movimento é um convite a colocar atuais prioridades de mobilidade em xeque
DEZEMBRO, 2024