Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Enxame e colmeias

Paolo Gerbaudo analisa a experiência das ocupações coletivas de vias públicas e mostra a vitalidade dos protestos contemporâneos por democracia e justiça redistributiva

17mar2022 | Edição #56

A imagem que conseguimos resgatar do fundo da retina lembra uma praça inteiramente ocupada. Ao centro, um círculo menor é composto de barracas de lona branca e faixas de protesto. Em volta, o círculo maior abarca a área restante da praça, com uma aglomeração tão densa que impede que se veja o chão. O dia 25 de janeiro de 2011 não foi apenas um marco decisivo na história da democracia egípcia, que culminou com a renúncia do então presidente Hosni Mubarak após trinta anos de exercício do poder.

Seguindo os protestos na Tunísia em dezembro de 2010, Cairo passou a ser a segunda estação da onda que caracterizou a Primavera Árabe, com a ocupação da praça Tahrir como símbolo incontestável. Mas também foi uma das revoltas celebradas sob o signo da organização supostamente espontânea via redes sociais, então associadas a uma promessa redentora de conexão vinda das tecnologias contemporâneas, que teriam virado pelo avesso a ação coletiva e marcado 2011 como o ano dos protestos.

A caracterização como uma rede sem centros buscava dar conta dos múltiplos nós de uma teia cuja arquitetura expressa a dispersão e a horizontalidade. Não havia um polo de comando, como anteriormente era possível atribuir a protestos organizados por movimentos sociais, partidos e sindicatos que não se valiam do poder de conexão do Twitter e do Facebook. Para Manuel Castells, os fluxos da sociedade em rede rompiam definitivamente com a lógica do lugar. O espaço físico deixava de ser necessário para potencializar a agregação de causas comuns. Já Michael Hardt e Antonio Negri usaram a imagem do enxame em constante movimento para designar a multidão que pode agir em conjunto sem ser reduzida a uma identidade ou a um território. É especialmente contra essas perspectivas que o italiano Paolo Gerbaudo se volta em Redes e ruas, publicado originalmente em 2012.

Para ele, a aparente horizontalidade espontânea encobre o trabalho pouco visível de lideranças que atuam em nome dos movimentos, ainda que relutem em se identificar como líderes. Revoltas dessa magnitude não acontecem com uma simples virada de chave. Há uma organização subjacente à ação coletiva contemporânea e outras formas de hierarquia que continuam a existir em organizações informais, indicando relações assimétricas entre quem mobiliza e quem é mobilizado, ainda que não haja cargos ou designações formais.

Dança

Gerbaudo usa os termos “liderança suave” e “performática”. A imagem da dança é central: há uma coreografia do protesto e da assembleia. Como acontece em todo espetáculo, os coreógrafos desenvolvem um trabalho oculto de montagem de roteiro e cenário para que a pretensa espontaneidade possa acontecer. Não estão no centro da cena; são invisíveis para observadores externos. Não necessariamente dão voz de comando; podem figurar como comunicadores de orientações, como parte de um coletivo maior.

Além disso, a imagem da rede sem centros está ancorada em fluxos desterritorializados. O mesmo acontece com a figura do enxame: Gerbaudo brinca que faltaram as colmeias. Em outras palavras: não é possível pensar na lógica da ação coletiva sem levar em conta a reunião no espaço físico. Tahrir acontece com uma mobilização inicial nas redes, mas ganha ímpeto quando a praça não só é ocupada temporariamente, mas de maneira permanente, com um acampamento que se estende por dezoito dias. Passa a ser um ponto magnético de atração de manifestantes e apoiadores, em que se coreografam assembleias coletivas para tomada de decisão e compartilhamento de visões, experiências e denúncias. Para o autor, é a própria densidade física em momentos como esse que carrega a eletricidade típica dessa revolta. Ocorre uma precipitação material dos movimentos que acontece justamente nas cidades, com uma geografia particular em cada um deles, porém sempre voltada a espaços públicos como praças e parques.

Não é possível pensar na lógica da ação coletiva sem levar em conta a reunião no espaço físico

Tahrir passa a ser um modelo de atuação coletiva emulado em outros protestos ao longo de 2011. O dia 15 de maio marca a data em que os indignados espanhóis não voltam para casa ao final da manifestação, mas decidem montar acampamento na Puerta del Sol. Assim como no Cairo, a praça se torna a principal plataforma de coordenação do movimento, que começa a se formar a partir das redes, encampado por grupos como Juventud sin Futuro, Estado del Malestar, a Plataforma de Afectados por la Hipoteca e, principalmente, o Democracia Real Ya. As barracas também ocupavam o centro e lá eram realizadas as assembleias todas as noites. Em setembro, o Occupy Wall Street só ganha adesão e legitimidade quando os manifestantes decidem acampar no Zuccotti Park em Nova York.

A perspectiva do livro não se resume a simplesmente afirmar que a lógica da internet é transposta para o espaço público, com uma cultura de colaboração sem cargos formais e com decisões tomadas coletivamente. Há tensão entre a agregação de pessoas que se encontram ombro a ombro na praça lotada e a comunicação distanciada das redes sociais. A experiência de ocupação e acampamento traz uma vitalidade distinta a esses protestos por democracia e justiça redistributiva. É uma imersão urbana acompanhada de uma profunda transformação na vivência cotidiana dos laços de solidariedade e cooperação. Redes e ruas têm que ser pensadas de maneira conjunta — e cada rede tem sua especificidade, assim como cada praça e parque.

Redes e ruas é fruto de uma pesquisa de campo profunda, em que Gerbaudo não só visitou as ocupações como entrevistou oitenta ativistas que participaram dos acampamentos da praça Tahrir, da Puerta del Sol e do Zuccotti Park. Se 2011 pode parecer um ano longínquo, o livro é traduzido para o português em boa hora, quando mais do que nunca estamos diante das condições e arranjos — digitais e territoriais — que nos mobilizam ou que nos paralisam perante a crise de nossas democracias.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.