Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Crônica da periferia

Coletânea de textos sobre a vida social e política no distrito paulistano de Sapopemba funciona como espelho da desigualdade brasileira

23abr2021 | Edição #45

“O que é que foram as nossas audiências públicas de Sapopemba? Todos eles, as autoridades convidadas a participar, diziam que conheciam a realidade do bairro. ‘Então conhecem? Vêm aqui conversar conosco para confirmar.’” A fala da liderança Valdênia Paulino, registrada pelo sociólogo Gabriel Feltran, é uma chave para analisar os espaços periféricos das cidades brasileiras. As audiências públicas foram uma experiência de escuta de familiares de vítimas de execução sumária em Sapopemba, distrito da Zona Leste de São Paulo. Realizadas dentro das favelas, não tinham estatuto jurídico oficial, mas autoridades eram chamadas a falar. Diante do convite, elas diziam já saber o que se passava em um dos distritos com maior índice de violência policial da cidade. “Então conhecem?” é uma fala de quem tem a legitimidade da experiência da vida cotidiana nesse território, podendo questionar o poder constituído a partir da formação de espaços democráticos de deliberação construídos a partir do tecido da sociedade civil.

Espaços periféricos: política, violência e território nas bordas da cidade é uma coletânea de diferentes estudos empíricos concentrados nas relações sociais e territoriais de Sapopemba. Se à primeira vista poderíamos pensar que se trata de uma perspectiva estritamente local, os organizadores do livro afirmam que é antes uma lente para olhar para as periferias urbanas, entendidas em sua pluralidade e heterogeneidade: “Sapopemba é uma crônica da história das periferias brasileiras”.

Inicialmente ocupado por pequenos agricultores imigrantes, de origem portuguesa e italiana, o bairro  teve seus primeiros loteamentos entregues a migrantes vindos do Nordeste. “Esta parte aqui, onde nós moramos hoje, era matagal. Servia mais para esconderijo de carros roubados, essas coisas. Ia até a avenida. Nós ocupamos duas vezes aqui! Da primeira vez tiraram!”, registra um morador da Fazenda da Juta, uma das áreas do distrito, no texto de Deocleciana Ferreira.

A Sapopemba dos anos 70 pode ser lida a partir do registro da ausência de políticas públicas estatais, um dos ingredientes centrais de um modelo de urbanização baseado na precarização do trabalho e na opressão de trabalhadores, que precisam também cuidar das condições necessárias à reprodução de sua própria vida, batendo laje nos finais de semana para construir sua casa e a de seus vizinhos. Autoconstrução e ausência de direitos são a fórmula da lógica da desordem que está no centro da espoliação urbana que foi diagnosticada pelo cientista político Lúcio Kowarick.

Sapopemba elegeu Lula e Dilma Rousseff para em seguida votar em Jair Bolsonaro

Mas Sapopemba também é emblemática por contar uma história de vanguarda da organização da sociedade civil, sendo uma espécie de incubadora dos movimentos sociais urbanos que eclodiram durante a redemocratização. Sua proximidade ao abc Paulista levou à organização de trabalhadores em sindicatos e à crise do emprego industrial na década seguinte. As audiências públicas citadas por Valdênia são um capítulo em uma trajetória de mobilização, que passou pelas Comunidades Eclesiais de Base, por movimentos de moradia e reforma urbana e pela instalação de equipamentos e serviços urbanos essenciais.

Letalidade

Já as décadas de 90 e 2000 marcam Sapopemba pela expansão do crime organizado, em uma combinação que articula mercados ilegais e recrudescimento dos aparatos policiais. Em 2018, era o distrito com maior concentração de mortes por intervenção policial. Mesmo capítulos do livro que não estão organizados na parte voltada para “Crime e violência” são inevitavelmente atravessados por essa letalidade. Ao analisarem a política de atendimento socioeducativo de adolescentes, Ana Paula Galdeano e Gabriela Lotta identificam que a polícia é a “porta de entrada” na política pública, já que jovens são apreendidos em diversas instâncias das polícias civil e militar. Em outra ponta, as igrejas evangélicas e pentecostais também passam não apenas a figurar na paisagem urbana, mas no entrelaçamento das relações sociais de moradores.

Mobilização social, violência e políticas públicas. Os três elementos articulados por Valdênia Paulino organizam a estrutura do livro. O olhar de “baixo”, a partir de análises etnográficas e vivências de moradores e moradoras, é o fio condutor do livro. Além disso, pesquisadores e pesquisadoras fazem um balanço de setenta anos de estudos sobre periferias no Brasil. O signo da ausência e o do capitalismo periférico dão lugar a novas discussões sobre os padrões territoriais e de sociabilidade desses espaços.

Sapopemba, assim como diversas periferias brasileiras, elegeu Lula e Dilma Rousseff para em seguida votar em Jair Bolsonaro. Também é marcada pelo descontentamento generalizado com a política institucional, por uma sensação de ausência de representação. Ao mesmo tempo, produz espaços políticos altamente potentes e ameaçadores para as autoridades oficiais. Depois de ameaças sistemáticas de morte, Valdênia teve de sair de Sapopemba. Em 2007, após denúncias de execuções sumárias, precisou se exilar no exterior. Foi a primeira defensora de direitos humanos oficialmente protegida pelo governo federal. É também por isso que Sapopemba é a crônica da história das periferias brasileiras. 

Se quisermos entender o descontentamento com a democracia e a formação de espaços democráticos por parte da sociedade civil, precisamos voltar nosso olhar para a periferia. Todos nós deveríamos aceitar o convite de Valdênia. Esse livro é um importante primeiro passo.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.