Adriana Terra
Arquitetura do sagrado
Livro com estudos para o tombamento de terreiros registra patrimônio afrorreligioso paulista e mostra lógica seletiva de valorização dos espaços
01dez2021 | Edição #52Um terreiro de candomblé lutou para permanecer na Zona Norte de São Paulo devido ao projeto de extensão de uma avenida. Outro, em Guarulhos, deu lugar a edifícios. Já um santuário de umbanda em Santo André foi acusado de prejudicar uma área que ajudou a preservar. Ao longo da história, a urbanização brasileira vem negando a importância da população negra na formação das cidades, dos estados e do país. Os resultados são a negação da cidadania e o desconhecimento de valores e pessoas importantes para a cultura nacional.
No livro Terreiros tombados em São Paulo, o antropólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Vagner Gonçalves da Silva traz esse debate a partir dos sete casos de salvaguarda do estado, nos quais colaborou com os terreiros para a preservação. O mais antigo é de 1990, o mais recente, de 2019, quando seis territórios afrorreligiosos foram tombados, fruto de um trabalho coletivo com as casas, pensado com o cientista social Pedro Neto, ilustrador da obra e coautor de um capítulo. Os dois conversaram com a Quatro Cinco Um sobre o livro, lançado por meio do Proac e que está disponível em instituições culturais paulistas, com versão digital prevista para o primeiro semestre de 2022.
Qual a importância do tombamento pioneiro do Axé Ilê Obá para o debate sobre memória paulista?
Vagner Gonçalves da Silva [VGS] Eu e a antropóloga Rita Amaral estávamos pesquisando os terreiros em São Paulo nos anos 80, entre eles o Axé Ilê Obá. A morte de Pai Caio de Xangô (sacerdote da casa) gerou um conflito, pois só duas pessoas em sua família consanguínea eram do candomblé, e ao entrar no espólio o terreno certamente seria vendido. Mãe Sylvia de Oxalá, sobrinha de Pai Caio, então nos procurou pedindo ajuda e propôs o tombamento, algo inédito em São Paulo. Foi difícil porque nem toda a comunidade acadêmica foi favorável. O órgão de patrimônio é montado por técnicos com uma formação, uma ideia do que é patrimônio. Um terreiro pode ser uma casa urbana do ponto de vista da arquitetura, então onde buscar a argumentação para o tombamento? Numa espécie de arquitetura do sagrado, porque ele é um ser vivo, epicentro de uma visão de mundo. Entender isso é fazer com que as pessoas o percebam não na lógica da “pedra e cal”. Essa discussão ainda estava crua nos anos 80.
‘O terreiro é produtor de uma visão de mundo que se choca com a noção das políticas públicas’
Por anos não houve tombamentos na esfera estadual, mas houve na municipal: em São Bernardo do Campo, o Axé Batistini; em Santo André, a Casa de Culto Dambala Kuere-Rho Bessein. Havia também um pedido de 2004 no Condephaat (órgão estadual) para o Terreiro Santa Bárbara, na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, porque a prefeitura pretendia estender uma avenida e parte do terreno seria desapropriada. Nesse período, outras casas me solicitaram laudos: o Ilê Olá Omi Asé Opô Araká (São Bernardo), o Ilê Afro-Brasileiro Odé Lorecy (Embu das Artes) e o Santuário Nacional da Umbanda (Santo André), que estava em área de proteção ambiental e a prefeitura achava que ele prejudicava o local, quando foi a comunidade que o preservou. No conjunto, vimos que cada terreiro representava uma nação: queto, queto reafricanizado, jeje e angola, e a umbanda. Foi mais fácil argumentar sobre essa amostra do candomblé e da umbanda paulistas.
Os casos no livro levantam questões como desigualdade de posse da terra, ideias de progresso, valor arquitetônico, tradição. Como tudo isso está atrelado ao racismo?
[VGS] O terreiro é produtor de uma visão de mundo que, em muitos sentidos, se choca com a noção das políticas públicas patrocinadas pelo Estado. Ele é um espaço que se transforma em lugar a partir de uma precariedade muitas vezes fundiária, porque, como é sabido, as populações negras sempre foram jogadas aos piores lugares para se morar, e quando estavam em lugar mais nobre foram expulsas. O terreiro reflete isso: os que estavam em regiões mais centrais deram lugar a prédios. Outro dado é a ideia do terreiro como polo civilizatório, porque sempre acham que ele é uma coisa suja, associada ao mal e, ao contrário, ele é uma oficina de significados muito complexa e difícil de entender quando você não participa dessa educação. Quando isso vai para os órgãos de patrimônio, acostumados a ver o que tem valor a partir de um critério de cultura branca, há uma guerra epistêmica.
Pedro Neto [PN] A ideia de racismo é justamente essa, em todas as facetas ele está presente e vai negar a humanidade das pessoas, e negando a humanidade vai negar a cultura. E daí vêm a gentrificação, a questão da posse, a separação de material e imaterial que para a gente é impossível compreender — um tambor dentro do terreiro não faz sentido se não tiver a mão do tocador. Mas o racismo vai colocando tudo em caixinhas.
‘Quando se fala sobre cultura brasileira, indígenas e africanos acabam suprimidos’
O que seria preciso para avançarmos na valorização de uma cultura de fato diversa?
[VGS] Primeiro, avançar na discussão sobre os instrumentos de salvaguarda contemplarem as diferentes noções presentes no que é chamado de cultura. A Constituição fala que a sociedade é formada por brancos, indígenas e africanos, mas quando se fala sobre cultura brasileira, indígenas e africanos acabam suprimidos. Outra questão é pressionar o Estado a reconhecer esses bens e construir outro tipo de memória. Isso que a gente está vendo agora é muito importante, questionar por que temos uma estátua de Borba Gato gigantesca e não uma de Zumbi no mesmo tamanho.
[PN] Além dos marcos legais, o Estado deve se abrir à possibilidade de construir outros instrumentos e mostrar à sociedade que existem outros jeitos de viver o mundo. Aí é que está o debate: Que diversidade é essa? Um saco em que se coloca tudo? Diversidade sem identidade não vale nada, fica solta, fora do seu contexto.
Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.