Bianca Tavolari
As cidades e as coisas
Antes e além de Stonewall
Ensaio de escritor e professor de direito mostra o papel dos espaços públicos e semipúblicos dos grandes centros na consolidação do movimento LGBTI+
27jun2022 | Edição #59A fachada de tijolinhos, o rejunte branco marcado entre eles, as portas em arco e a janela retangular ao centro como uma vitrine. A arquitetura e o nome estão entrelaçados para designar a construção que vai muito além de um bar: o Stonewall Inn, literalmente uma parede de pedra, um símbolo de força da história das lutas do movimento LGBTI+. O Greenwich Village do final da década de 60 era muito distinto do que é hoje. O bairro nova-iorquino que abrigava o Stonewall marcava um território percebido como degradado e abandonado à própria sorte, frequentado e habitado especialmente por pessoas pobres. “O público cativo do bar eram os setores mais marginalizados da sociedade: gays afeminados, lésbicas masculinizadas, michês, drags (uma classificação adotada à época sobretudo para designar pessoas trans), pessoas em situação de rua, enfim, LGBTI+ pobres, negras e latinas que pertenciam a um ‘submundo’ e que, por isso, não gozavam de reconhecimento como cidadãs”, escreve Renan Quinalha em Movimento LGBTI+: uma breve história do século 19 aos nossos dias.
Movimento LGBTI+: uma breve história do século 19 aos nossos dias, de Renan Quinalha
Ao mesmo tempo que era um lugar raro de encontro no espaço público, o Stonewall estava longe de ser uma ilha idílica na metrópole. Controlado pela Máfia, o bar vivia sob tensão e negociação com as forças de segurança, que exigiam propinas e conduziam batidas policiais sistemáticas para humilhar, extorquir e prender frequentadores. A noite e a madrugada entre os dias 28 e 29 de junho de 1969 se tornariam um marco nessa relação. A resistência dos frequentadores aos achaques se tornou organizada e aberta. E a identidade gay passa para o centro de um ativismo urbano que começa a se estruturar enquanto tal.
Contar a história de um movimento social é uma costura intrincada para alinhavar os documentos e arquivos já estabelecidos e, especialmente, as escolhas e decisões de quem conta. Para Quinalha, contar uma das possíveis histórias do movimento LGBTI+ é trabalhar com um inventário em negativo. Não há apenas a dificuldade de elaborar uma arqueologia dos acontecimentos significativos, em uma tarefa de lapidação de camadas soterradas por estigma e violência, mas também de lidar com as ausências.
As metrópoles criaram condições para que experiências homoeróticas se tornassem coletivas
Stonewall certamente é uma das presenças incontornáveis em qualquer história do movimento LGBTI+. É uma das manifestações pioneiras de visibilidade de uma identidade que viria a se tornar mais estável e compartilhada. O livro de Quinalha é precioso ao mostrar que a revolta é fundamental — o aniversário de Stonewall marca, internacionalmente, as celebrações das Paradas do Orgulho em cidades pelo mundo —, mas é também mítica. Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, drag queens e prostitutas que foram apagadas do protagonismo da revolta, relatam os conflitos internos de uma sociabilidade dominada por homens gays cisgêneros. Além disso, as revoltas em bares não começam com Stonewall, e sim com diversas outras resistências que as antecederam.
Fixar pontos de partida é sempre uma atividade ingrata. Se Stonewall inaugura uma militância mais combativa e orgulhosa, em comparação aos grupos bem-comportados que tinham investido em uma agenda de assimilação de gays e lésbicas, Quinalha nos mostra que o começo está menos nos Estados Unidos e mais na Alemanha, especificamente em Berlim. E o autor explicita sua escolha: não se trata de uma história dos atos individuais que desafiaram as normas de comportamento no campo do gênero e da sexualidade, mas de um tipo específico de ação coletiva que nomeia suas experiências compartilhadas para endereçar necessidades de mudanças sociais e políticas e reivindicar direitos.
As metrópoles criaram condições para que experiências homoeróticas se tornassem coletivas e organizadas. “O ar da cidade liberta” (“Stadtluft macht frei”) era um dito popular medieval germânico para marcar a vida em liberdade nos centros urbanos nascentes, especialmente nas tensões entre burguesia e aristocracia. A ideia vai ganhar contornos parecidos e distintos na mesma medida com a fuga para a cidade na Berlim da virada do século 19 para o 20. Anonimato, intimidade e oportunidades de trabalho assalariado foram condições para a vida fora da família nuclear e das cidades pequenas. Também a criminalização das homossexualidades, marcada pelo parágrafo 175 do Código Penal do Império Alemão, foi fator importante de aglutinação da geração pioneira dessas lutas. Ele seria utilizado amplamente nos anos do nazismo.
Armário
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Se o armário é um dispositivo para apagar modos de vida que desviam do que é entendido como norma de gênero e sexualidade e marca o espaço privado da casa familiar, a saída para o espaço público da cidade caracteriza seu contrário. O livro de Quinalha mostra como bares, praças e parques de pegação e a formação de uma comunidade que garantisse condições de vida e resistência nesses espaços públicos e semipúblicos foram fundamentais. Não só em Nova York ou Berlim, mas também no Brasil, em que a formação do movimento LGBTI+ estará marcada pelo enfrentamento do autoritarismo e da opressão da ditadura civil-militar. Além de um capítulo específico, Quinalha também publicou o indispensável Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT, fruto de sua pesquisa de doutorado.
Em um arquivo em negativo, o mais importante não é o que se coleta, mas o que ainda falta coletar. Em tempos de retrocessos em grande escala, registrar e narrar é imprescindível. O livro de Renan Quinalha é uma lufada de ar fresco para pensar e organizar múltiplas resistências.
Matéria publicada na edição impressa #59 em junho de 2022.
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