Coluna

Kalaf Epalanga

Um benguelense em Berlin

“Madonna” de Caconda

A representação do primeiro livro da Bíblia desenhada pelo mestre Michelangelo não é mais do que a visão eurocêntrica da terra e dos céus que exclui todo o resto

12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20

A minha avó Helena, que Deus a tenha, era uma dessas angolanas exemplares, o tipo de mulher sem medo, que não se esquiva a nada. Nascida em Caconda, na província da Huíla, e dona de uma fé inabalável. Acreditava no poder da enxada e da palavra divina. Enquanto teve saúde, nunca a vi faltar a nenhum evento religioso. Levava tão a sério as questões do reino de Deus que fazia questão de ir à missa duas vezes ao dia, todos os dias. Pela manhã, lá ia ela com o seu rosário para a paróquia de Santo António da Catumbela antes de seguir para a sua lavra, um pequeno quinhão de terra nos limites da vila, e repetia a dose ao final da tarde, depois das suas obrigações domésticas.

Nunca a vi questionar a religiosidade de ninguém, embora repreendesse a minha falta de interesse pela catequese. Contrário aos restantes membros da família, fui o único que não fez a primeira comunhão; até hoje paira sobre a minha cabeça o título de ateu que me atribuiu com um encolher de ombros resignado e um sorriso de compaixão quando se apercebeu que eu e Deus teríamos uma relação distante.

Eu não rezo. E, embora tenha nascido e sido criado em casa de cristãos, dizer que a religião me é distante é eufemismo. Para mim, está tão longe como o mar está do céu. Dito isso, não me furto em dizer que, se me esforçar, consigo recitar o Pai Nosso com convicção. Não sei se me servirá de alguma coisa, me conforta a ideia de que o tenho na ponta da língua para qualquer eventualidade, como, por exemplo, se um dia alguém lembrar-se de pedir-me um salmo ou uma oração de consolo. Quando o assunto é alma, mais vale prevenir do que remediar.

A minha avó foi promovida a ancestral, faz agora uma década, mas a sua religiosidade continua a dialogar comigo sempre que me deparo diante de imagens de Jesus de Nazaré loiro e de olhos azuis, como quando da minha visita ao Vaticano, turistando a minha angolanidade pelo mundo livre como qualquer filho de Deus. Lá, senti o teto da Capela Sistina com seus magníficos e extensos afrescos, nove cenas do Gênesis — dentre as quais a icónica obra-prima A criação de Adão —, desabar sobre minha cabeça de tão opressivas que eram aquelas imagens. A representação do primeiro livro da Bíblia desenhada pelo mestre Michelangelo não é mais do que a visão eurocêntrica da terra e dos céus que exclui todo o resto, os nascidos em Belém da Palestina, em Belém do Pará ou até os nascidos na minha Benguela umbilical.

Carmelitas

Contudo, a fé e a crença num Deus todo-poderoso, Jesus Cristo o profeta salvador e o Espírito Santo para o consolo da alma constituem a base que unifica todos os cristãos. Todos são descendentes de Eva e Adão, todos se regem, a princípio, pelos mesmos dez mandamentos que Moisés trouxe depois de subir ao Monte Sinai. Ainda que com todas as divergências ou interpretações distintas do texto sagrado. A certeza de que Jesus regressará, de que existe vida além da morte, de que todo o sofrimento é temporário e de que existe eternidade foi o que conquistou o coração da senhora minha avó, que me tinha nas suas orações mesmo que tenha feito muito pouco para as merecer.

Nem o meu nome traz essa influência, ao contrário de grande parte da família — excepto alguns nascidos nos anos 1980 que viraram xarás de personagens das novelas brasileiras — que tem nomes católicos e compostos, sendo o trio Maria, Fátima e Carmo o mais utilizado.

Carmo, que serve de base para quatro mulheres de gerações diferentes da minha família, surgiu por intermédio de um padre da missão de Bangu-a-Kitamba Kia-Kitubia, o antigo convento da congregação Carmelitas de Pés Descalços que se instalara na região do Cuanza Norte por volta do século 16 e foi responsável pela expansão do catolicismo no Dondo do Rei Ngoako Mbandi Kiluanji, pai de Rainha N’zinga Mbamde. Padres responsáveis pela formação de intelectuais em áreas como política, jornalismo, enfermagem, educação e, claro, a fixação desse Jesus que Hollywood recriou recorrendo aos actores Rodrigo Santoro e ao hot Diogo Morgado, que fez Oprah Winfrey se emocionar ao ver-lhe no papel do homem que morreu para nos salvar dos nossos pecados.

Os Carmelitas têm esse nome porque a sua origem remota é a Ordem do Carmo, nascida no século 12 no Monte Carmelo, no atual Estado de Israel, pelos eremitas que tinham um estilo de vida inspirado no profeta Elias. Essa congregação era estimada por minha avó Helena por ser também devota de um santo negro — Santo Elesbão, imperador etíope que, antes de renunciar ao trono a favor do filho, dividiu a sua riqueza entre os súbditos pobres e partiu para Jerusalém, onde depositou sua coroa real na igreja do Santo Sepulcro, optando por viver como monge anacoreta no deserto até a sua morte, em 555. E, em defesa dos cristãos perseguidos, conduziu a nação etíope numa guerra contra o reino vizinho.

Santos negros

As imagens de santos negros me levam de volta ao encalço da Dona Helena e, com ela presente, à vontade de partilhar o quadro de Harmonia Rosales, a pintora de Chicago de origem cubana que recriou A criação de Adão de Michelangelo, substituindo as figuras masculinas brancas — que representam Jesus, os anjos e Deus esticando o dedo indicador para Adão — por mulheres negras. Gostaria de ouvir minha avó opinar ainda sobre outra imagem da mesma artista, intitulada A Virgem, que recria as imagens da Virgem Maria retratadas em quadros como a Madonna del Granduca de Rafael. Onde estamos acostumados a ver uma mulher de tez clara e feições europeias, agora temos uma bela mulher negra que fisicamente se parece com minha avó quando jovem, mesmo nariz, mesmo cabelo, mesmo olhar desafiador, e aquela criança nos braços se parece com a filha dela, minha mãe.

A maior parte da minha família vive agora na Catumbela, cidade que identificarei sempre como sua, mesmo que nenhum dos meus avós maternos tenha nascido nela, mas. como o fim e o durante são tão mais importantes que o lugar onde se começa, esse lugar será sempre deles. Na casa ao lado, bem de frente à janela do quarto em que me hospedo quando estou de visita, vive um grupo de freiras da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora de La Salette numa espécie de internato, creio. Todas as semanas, quando o relógio marca as doze e as dezoito badaladas do dia, elas se juntam para rezar e entoar cânticos bíblicos em umbundo.

Ainda que o relacionamento entre mim e o Senhor carregue a sigla de “complicado”, sempre que me vejo regressado ao lar matriarcal, não passo um dia sem que religiosamente me debruce na janela para ouvir as vozes afinadíssimas das noviças Saletinas, tal é o fascínio que essa língua exerce sobre mim. E, baixinho para não acordar os deuses, assobio uma reza para a minha
Madonna de Caconda.

Quem escreveu esse texto

Kalaf Epalanga

Escreveu Também os brancos sabem dançar (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.