Quadrinhos,

Veneno na tinta

Coleção de quatro álbuns dos anos 1990 mostra como Lourenço Mutarelli faz seus personagens dançarem em meio ao lixo paulistano

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

Há um certo veneno na tinta quando a quarta capa (preta) de Capa preta menciona que Lourenço Mutarelli “trabalhou nos Estúdios Mauricio de Sousa”. O autor trabalhou de fato, durante três anos da década de 1980, como intercalador e cenarista nos desenhos animados da Turma da Mônica. O veneno está em comparar os tracinhos fofos desses personagens ao que se vê em Capa preta.

Na página 31, um homem nu de óculos escuros — cujo rosto lembra fotos do Mutarelli da época —, de pênis flácido à mostra, corpo emaciado, antebraços que parecem canudos e pernas que terminam em pontas de osso descarnado, está sentado sob uma espécie de trono que brota de uma planta espinhenta. Demônios ou anjinhos (alguns têm auréolas), também nus, voam ao seu redor com asas peludas como um escroto. Uma placa sobre o trono diz “Ephialtes”, “pesadelo” no grego antigo. Um lacaio, que a figura no trono segura por coleira e corda, diz: “E o senhor deve ser O Senhor… digo, Deus!?”.

Não é só a dificuldade em imaginar que o mesmo desenhista repetia o traço-padrão de Mauricio de Sousa. Ele e Mutarelli viraram, cada um a seu modo, pontos de referência divergentes no quadrinho brasileiro.

A HQ nacional adulta teve período de pujança nos anos 1980, mobilizada pelas vendas de Chiclete com Banana, Piratas do Tietê, Geraldão e outras revistas. O Plano Collor acabou com essa fase. Os anos 1990 ficaram conhecidos como um período de terra árida, em que poucos quadrinistas se aventuravam a publicar. Mutarelli começou a carreira justamente aí. Capa preta é a coletânea de seus trabalhos na época.

O que não se perde em nenhum momento é a imaginação gráfica, para não dizer macabra, da obra de Mutarelli

São quatro álbuns, lançados originalmente entre 1991 e 1997: “Transubstanciação”, “Desgraçados”, “Eu te amo Lucimar” e “A confluência da forquilha”. Saíram por editoras que não existem mais (Dealer, Vidente, Vortex, Lilás), nunca foram republicados (com exceção do primeiro) e precedem os álbuns que ficaram conhecidos como Diomedes ou trilogia do acidente, sua obra máxima nas HQs — publicada em quatro volumes a partir de 1999 pela Devir e, depois, em volume único pela Quadrinhos na Cia., em 2012. Também precedem O cheiro do ralo, O natimorto e outros seis livros de prosa que publicou, já neste século, pela Companhia das Letras.

Os quatro quadrinhos representam uma escalada de Lourenço Mutarelli na aplicação da narrativa clássica. Se “Transubstanciação” é um desfile de paisagens do inferno e a conexão lógica exige mais do leitor, a partir de “Lucimar” já se tem um encadeamento mais regrado.

Do grito ao diálogo

O que não se perde em nenhum momento é a imaginação gráfica. Para não dizer macabra: folheando a esmo, vê-se uma mulher fazendo felação em um toco de braço, um feto deformado e uma paródia de Charlie Brown com língua lasciva, que diz: “Hoje tem desenho geométrico com aquela professora gostosa!”.

“Transubstanciação” é a história de Thiago, um poeta fixado na própria morte. Seu pai tinha quatro braços e era atração de circo. Thiago diz que o matou “por estar exposto neste mundo”. Não há certeza quanto ao que o personagem narra e aos seus delírios, como a cena infernal citada acima. O primeiro álbum de Mutarelli acaba sendo mais um desfile de cenas dantescas do que uma narrativa fácil.

“Desgraçados” anaboliza o desfile de deformações, mutilações e escatologia. Os desgraçados do título são uma série de personagens envolvidos com vários tipos de sadismo, mais ou menos conectados à narrativa do ingênuo chamado Jesus, que quer resgatar sua amada Elizabeth do vício em morfina.

É “Desgraçados” que mostra Mutarelli mais meticuloso no desenho, também recorrendo a recursos como fotocópia e colagem. Em um plano aberto da cidade, ele lembra os panoramas de Nova York por Will Eisner. Mas é um Eisner tétrico: o hotel chama-se “Enema”, um letreiro diz “Enjoo na gravidez? Tome  Talidomida” e um homem se atira de uma janela. O protagonista pensa: “E hoje me sinto como um pai que conta histórias para seu filhinho morto.”

O título de “Eu te amo Lucimar” é, primeiramente, a declaração do autor à leitora que acabou virando sua esposa, a professora e escritora Lucimar Mutarelli. O enredo envolve o assassinato de Damião pelo seu irmão gêmeo, Cosme, e o estado mental do assassino depois do crime. Um de seus refúgios é a paixão pela professora de desenho geométrico… Lucimar.

“Eu te amo Lucimar” é a única história da coleção feita com a técnica de aguada (o traço é complementado por pintura à base de nanquim), que dá tons de cinza e deixa o desenho de Mutarelli menos congestionado. É também a história que mais sofre com falta de revisão gramatical, problema de todo o volume.

O último álbum na coleção, “A confluência da forquilha” — nome da rua onde Lourenço e Lucimar moravam, na Vila Itaim — trata do personagem Matheus, artista plástico que abandona os quadrinhos para se dedicar à pintura. Ele é abordado por um empresário sinistro que quer contratar seus serviços, pagando “mil dinheiros” semanais por cada tema que ele lhe solicitar.

“Costumo falar que no começo eu me ‘expressava’ e a partir de um tempo passei a me ‘comunicar’”, Mutarelli declarou em entrevista ao site OGrito!. “Antes eu gritava e depois passei a, talvez, dialogar.” É o que se sente no andar de Capa preta. Ainda há gritos quando se chega a “Confluência”, mas também se dá a mão ao leitor. Do berro do death metal — há desenho de Mutarelli que caberia bem numa capa do Cannibal Corpse —, ele passou à condução do tango.

Precursor

Naquela terra árida dos anos 1990, Mutarelli colecionou troféus HQ Mix de melhor graphic novel nacional e melhor álbum de ficção pelos quatro títulos de Capa preta e por outros. Ele viria a ganhar ainda mais troféus, tanto que em 2008, em entrevista à Rolling Stone, disse que não aguentava mais “ganhar HQ Mix”.

Essa situação lembra que havia poucas opções nacionais nos anos 1990 que não Mutarelli. O trio Angeli, Laerte e Glauco nunca parou de produzir, mas jamais se enveredou pelo formato álbum com histórias singulares, de mais páginas e mais fôlego. Luiz Gê, Edgar Vasques e Flavio Colin, entre poucos outros, não fizeram muita coisa nesse formato nos anos 1990. Antes dos anos 2000, as graphic novels nacionais não recebiam apoio nem de leitores nem de editoras. Mas Lourenço Mutarelli já estava lá, lançando um álbum a cada dois ou três anos.

Seu desenho parece uma confluência entre os quadrinhos de terror brasileiros dos anos 1970 e 1980 e o underground que vinha dos Estados Unidos e da Europa, representado no Brasil sobretudo pela revista Animal (1988-1991). Na época dos quatro álbuns, também circulavam aqui Sandman e títulos de terror como Hellraiser e Raça das trevas, cuja arte e temas dialogam com Mutarelli. Não que o autor brasileiro lesse esse material, mas quem sabe todos bebessem das mesmas influências. As máquinas de carne de “Transubstanciação” lembram as deturpações visuais que Neil Gaiman e Clive Barker criavam junto a artistas como Sam Kieth, Kelley Jones e Jim Baikie.

O autor, por sua vez, diz que suas referências são de fora dos quadrinhos. Às vezes elas aparecem nas próprias histórias. O ilustrador alemão George Grosz é citado pelo nome, Augusto dos Anjos é parte importante de “Eu te amo Lucimar” e seus personagens leem Dostoiévski. Também há uma predileção por gente dançando e ouvindo tango.

Dos anos 2000 para cá, a produção de quadrinhos nacionais cresceu. Mutarelli é tratado como um precursor dessa época — não participante, pois hoje só se dedica à literatura. Há esboços de seu traço nos trabalhos de Rafael Grampá, Marcelo D’Salete, Roger Cruz, Victor Bello, Cynthia Bonacossa. Mauricio de Sousa passa longe de todos.

Mas a influência mais forte na obra do autor provavelmente é a da cidade de São Paulo, onde ele nasceu e sempre morou. Tudo que a cidade tem de sujo, de possível e de esotérico parece traduzido no traço e no texto de Mutarelli. Da poluição visual à massa heterogênea de gente enfurnada em apartamentinhos de pouca luz, com vizinhos que veneram taras, religiões e remédios que você nunca cogitou, à potência do mundo interior e imaginativo de milhões de pessoas em conflito diário com essa sujeira, essa massa e essa heterogeneidade. Mutarelli está longe de criticar o podre: ao sujar o papel e fazer esses personagens literalmente dançar em meio ao lixo, ele está celebrando São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Érico Assis

Tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.