A protagonista Remina em imagem do novo mangá de Ito (Divulgação)

Literatura japonesa,

Um planeta com olho e língua

Junji Ito reafirma sua fama de conceber imagens que desafiam a lógica com uma competência no traço que não as deixa cair no ridículo

01fev2025 | Edição #90 fev

Junji Ito é uma marca. O mangaká de 61 anos é um dos poucos na sua área que pode afirmar que é mais conhecido pelo próprio nome do que pelos personagens que criou, ou pelo nome de seus mangás. A “Coleção Junji Ito”, da editora Pipoca & Nanquim, é mais lembrada assim do que pelos títulos dos catorze volumes. Nas capas da “Biblioteca Junji Ito”, da editora Darkside, as oito letras do seu nome têm tamanho garrafal, enquanto os títulos de fato exigem óculos. Junji Ito Collection foi o nome que o canal de streaming Crunchyroll deu a uma série de adaptações de seus mangás. A Netflix também destacou o nome do autor quando lançou a série Junji Ito: histórias macabras do Japão.

Ito também é montanhas de papel. No período entre fevereiro de 2021 e fevereiro de 2024, o site Guia dos Quadrinhos registra 24 lançamentos do autor no Brasil, por cinco editoras. Muitos são coleções de contos, como O beco e Dismorfos, com média de quatrocentas páginas. Sua adaptação do clássico Declínio de um homem, de Osamu Dazai, tem mais de seiscentas. Não faz parte da lista sua obra que muitos consideram a mais famosa, Uzumaki (660 páginas), que ainda assim ganha sucessivas tiragens no Brasil desde a edição de 2018. Ito inclusive esteve por aqui em 2023, como parte de uma turnê que passou por outros grandes mercados ocidentais dos quadrinhos, os Estados Unidos e a França, onde suas obras também fazem pilhas e os fãs fazem filas.

Lançado em 2024 pela Devir, Planeta demoníaco Remina, em suas 252 páginas, é até acanhado perto dos outros tijolos do autor. E, se o nome dele não está tão garrafal quanto em outros lançamentos, a menina de cabelos compridos e cara de terror na capa são reconhecíveis de imediato para quem já teve contato com o desenho, o estilo e a marca Ito.

A trama: no futuro próximo, identificado como “20XX”, o cientista japonês Dr. Tsuneo Ooguro descobre um novo planeta e batiza-o Remina, mesmo nome de sua filha de dezesseis anos. Remina, a filha, é alçada a estrela pop e faz sucesso na onda da descoberta astrofísica.

A situação vira outra quando Dr. Ooguro e sua equipe concluem que Remina, o planeta, está em movimento. Não só isso: ele devora planetas por onde passa e está vindo em direção à Terra em velocidade maior que a da luz. A população, em pânico, não sabe o que fazer, mas sabe que é o seu fim e precisa de culpados. A culpada mais óbvia é a que tem o mesmo nome: Remina, a filha, estaria atraindo Remina, o planeta.

O mangá se desenvolve na mesma velocidade da trajetória do planeta. A premissa descrita já está formada no primeiro capítulo, em quarenta páginas de leitura acelerada. A partir dali começa a corrida para o apocalipse, conforme o planeta devorador avança e a Terra entra em convulsão.

Mal sobra tempo para a turba crucificar, literalmente, Dr. Ooguro e filha antes que a Terra sinta os primeiros efeitos da aproximação do planeta demoníaco. Iniciativas como enviar astronautas para deter Remina ou atacá-lo com armas nucleares dão redondamente errado.

Remina chega. O planeta estaciona à órbita da Terra. Abre um olho. Depois, uma boca. Em seguida, projeta uma língua abjeta que tem milhares de quilômetros, como se fosse lamber os beiços.

Gigante lambedor 

Em sua autobiografia Buracos da estranheza, lançada no Brasil pela Pipoca & Nanquim, Ito conta que a ideia de Planeta demoníaco Remina partiu de um editor que o desafiou a trabalhar no subgênero do “horror cósmico”, que ainda não tinha abordado. Pode-se supor que a motivação do mangaká, além do desafio, foi a chance de desenhar um planeta gigante e devorador, com um olho e uma língua — e criar uma história em torno dessa monstruosidade que testa os limites tanto da física quanto do bom gosto.

Remina, o planeta, usa a língua para devorar a Lua na frente da humanidade em pânico. Não para aí. Em seguida, o planeta diabólico lambe a Terra, literalmente, e a faz girar como um pião. O resultado é uma longa cena em que os terráqueos indefesos começam a voar pela atmosfera. Soma-se ao absurdo uma cena de perseguição: Remina, a garota, conseguiu sobreviver à crucificação, mas aqueles que queriam crucificá-la voam atrás da ex-popstar querendo uma nova chance para matá-la.

É inegável que o roteiro lembra filmecos de ficção científica e terror classe Z, e o desenvolvimento carrega a mesma ingenuidade desse tipo de produção. Há uma pátina de pseudoprofundidade se o leitor aceitar que a história propõe discussões sobre idolatria e fanatismo — Remina, a adorada popstar, vira ovelha ao sacrifício quando a população decide que ela é a culpada pelo apocalipse — ou que o horror do que as pessoas fazem entre si é pior do que o de um planeta-monstro. Pode-se cogitar ainda uma questão de identidade: Remina, a garota, nunca pôde ser ela mesma porque seu nome foi entregue ao planeta demoníaco.

Mas essa pátina é uma casca fina. O que se pode destacar como forte no mangá são dois pontos que estão presentes na maioria dos trabalhos de Junji Ito. O primeiro é de que o mal é inexorável. Remina, o planeta, é indiferente a tudo por onde passa e apenas cumpre sua trajetória de viajar pelo espaço e devorar. Muitos monstros de Ito são assim: não têm desejo ou vontade, simplesmente são. Remina é mais uma força incontrolável, indiferente aos seres humanos. No horror cósmico, os monstros do autor fazem bom casamento com uma máxima antiga: o universo é indiferente.

O segundo ponto é o grande chamariz da marca do mangaká: a criatividade e a capacidade técnica para conceber imagens que desafiam a lógica, a realidade e a imaginação. Elas têm impacto pelo absurdo, mas a competência de traço e design não deixam que elas caiam no ridículo.

Quando um ônibus espacial se aproxima de Remina e descobre que o planeta tem um olho gigante, Ito usa duas páginas para dar a dimensão do olho frente ao ônibus. Quando, na virada de página, o olho se volta para a minúscula nave, a cena se encerra. O destino dos astronautas já ficou claro.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Érico Assis

Tradutor e jornalista. É autor de Balões de Pensamento (ed. Balão Editorial).

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Um planeta com olho e língua”