Música,

Herói picaresco

Livro traz o perfil do compositor Luiz Melodia, artista de mil talentos que criou várias belezas do cancioneiro nacional

01out2020 | Edição #38 out.2020

Para Luiz Melodia (1951-2017), sair do Estácio nunca foi o X do problema. Ao contrário, foi lá que ele resolveu todas as incógnitas da sua criatividade. De alguma maneira, jamais deixou o bairro que estava na massa do seu sangue, alimentando uma relação geográfico-poética que lhe determinou a trajetória, uma das mais talentosas nas últimas décadas do século 20 no Brasil. Esqueça aquela história de “maldito”: Melodia era um compositor intuitivo e moderno; um cantor sofisticado, que sabia usar a extensão da voz; um dançarino de embasbacar; e um homem elegante. 

O recém-lançado Meu nome é ébano: a vida e a obra de Luiz Melodia, de Toninho Vaz, praticamente começa — na rua Nova do Morro de São Carlos, onde nasceu Luiz Carlos dos Santos, trazido ao mundo por mãos de parteira — e termina no bairro carioca do Estácio, onde o corpo de Melodia foi velado na quadra lotada da escola de samba Estácio de Sá, depois de uma batalha de treze meses contra um câncer na medula. No meio, um momento-chave para entender e avaliar a importância do artista: a gravação do primeiro disco, Pérola Negra, em 1973, que o autor reconstitui com riqueza de detalhes.

Aquele foi um ano que, magicamente, gerou discos que se recusam a morrer. Junto com Melodia, estrearam os Secos & Molhados (estouro de vendas com 900 mil cópias) e, em trabalhos solos, Raul Seixas, João Bosco, Walter Franco, Sérgio Sampaio, Francis Hime e Gonzaguinha. João Gilberto lançou seu álbum branco; Tom Jobim, Matita Perê; Milton Nascimento, Milagre dos peixes; Caetano Veloso, Araçá azul; Paulinho da Viola, Nervos de aço; e Nelson Cavaquinho, seu melhor registro cantando e tocando o violão com as cordas (e também os nervos) de aço.

‘Pérola Negra’ teve apenas dez faixas e pouco mais de 27 minutos: a censura proibiu duas músicas

Presença unânime em quase todas as tentativas de cânone da música brasileira, Pérola Negra é genial desde a capa, clicada por Rubens Maia em um ferro-velho de Copacabana: Melodia aparece sentado dentro de uma banheira, com um globo terrestre nas mãos, cercado de feijão-preto por todos os lados, como se fossem as tais pérolas. A gravadora Polygram alugou uma casa em Jacarepaguá com o propósito de servir de base para a produção. Além de Luiz, do baixista Rubão Sabino e do guitarrista Renato Piau, nela foi morar Daminhão Experiença, músico alternativo que na época era uma figura, com seus longos dreads (ou rastafáris, como se dizia). Ele surge para atrapalhar o acordeão de Dominguinhos em “Forró de janeiro”, gritando frases ininteligíveis.

Disco censurado

Resultou um disco curto, como de praxe na época. Com concepção musical de Perinho Albuquerque, autor dos arranjos e responsável por misturar o samba e o blues próprios de Melodia com o rock, o jazz, o forró e o choro, tem só dez faixas e pouco mais de 27 minutos. A concisão tem um motivo estúpido. Sob o governo Médici, a Censura proibiu duas músicas: “Feras que virão” e “Feto, poeta do morro”, atrasando em três meses o lançamento. Está lá o bairro fundamental: no samba-choro “Estácio, eu e você” (destaque para Altamiro Carrilho na flauta) e em “Estácio, holly Estácio”, já gravada no ano anterior por Maria Bethânia e que, segundo o crítico musical Pedro Só, “mistura chapação e bode dos anos de chumbo com doçura nostálgica”. 

“Farrapo humano” é até hoje uma raridade no cancioneiro nacional: a letra fala em suicídio. Para este resenhista, a faixa que excede é o blues tropicalista “Magrelinha”: 

O beijo meu
Vem com melado decorado cor-de-rosa
O sonho seu
Vem dos lugares mais distantes, terra 
[dos gigantes
Super-homem, supermosca, 
[supercarioca
Supereu, supereu. 

A musa foi uma moça de nome Deda, filha de cônsul, que morava num confortável apartamento na Lagoa e era namorada do poeta Waly Salomão — que um dia bobeou e a perdeu. 

Aventuras

Escrito com agilidade e uma estrutura que lembra mais uma grande reportagem ou um alentado perfil do que uma biografia tradicional, Meu nome é ébano é quase um livro de aventuras, uma obra picaresca, cujo herói, ao longo da sua jornada, luta contra os preconceitos enraizados no país (há pelo menos três episódios de racismo), envolve-se com mil mulheres até descobrir o amor da sua vida na Bahia, reconcilia-se com um filho que julgava perdido, sofre altos e baixos na carreira artística, aprende com os tombos, vibra com os acertos, não abaixa a cabeça para os poderosos, tira onda com os chatos, desmonta os falsos moralistas, demonstra apetite incomum por bebidas e drogas, responde com bom humor diante das adversidades e, no fim, triunfa porque sabe que o “Estácio acalma os sentidos/ dos erros que faço”. 

O mais infalível dos clichês a respeito do Estácio o identifica como “berço do samba”. Sim, foi ali, no enclave entre o Catumbi, o Maracanã, o Rio Comprido e a Cidade Nova (ex-Mangue, a mitológica zona de prostituição carioca), que surgiu a primeira escola de samba, a Deixa Falar, em 1928, e também ali se realizaram os primeiros desfiles de blocos. Dois botequins — o Café do Compadre, na rua Santos Rodrigues, e o Bar Apollo, no largo do Estácio — concentravam a farra promovida por uma turma de pretos e mestiços, na casa dos vinte anos ou até com menos idade, todos altos e elegantes (ternos de linho, camisas de seda, sapatos de duas cores) como Luiz Melodia e, como ele, dotados de incrível capacidade para fazer música. 

Mal sabiam tocar violão de ouvido, mas inventaram instrumentos: o surdo, por exemplo. Alguns nomes ficaram na história: Ismael Silva, Nilton Bastos, Heitor dos Prazeres, Alcebíades Barcelos, o Bide. Outros, embora importantes, despontaram para o anonimato: Canuto, Nanal, Geraldo Vagabundo e Getúlio Marinho, o Amor. E havia quem estivesse mais dedicado, sem largar o tamborim, à exploração das mulheres que trabalhavam na zona, ali perto: Brancura e Baiaco. 

O importante, no entanto, foi o caldo da criação coletiva: a fixação e padronização do samba como gênero urbano genuinamente carioca. Pena que a maioria deles morreu cedo e não teve tempo de conferir os desdobramentos da sua descoberta. Quase cinquenta anos depois, Melodia iria continuar a revolução, incorporando novos ritmos à matriz.

Melódia

Registre-se: Luiz Melodia não gostava de ser chamado de Melodia. Preferia Luiz, a seco. E detestava a forma reduzida “Melô”, usada para simular intimidade. Aceitava com bom humor a variante Melódia, tratamento íntimo do amigo e parceiro Renato Piau, que acabou pegando. Ganhou o apelido e mais tarde sobrenome artístico no Morro de São Carlos. Herança do pai, Oswaldo dos Santos, conhecido como Oswaldo Melodia, funcionário público, devoto da Igreja Batista, bom tocador de viola de quatro cordas, compositor.

No instrumento do pai, tirou os primeiros sons. Seu negócio era o iê-iê-iê de outra turma, a da vizinha rua Haddock Lobo, na Tijuca, reduto da Jovem Guarda. Inspirado no que ouvia no programa Hoje é dia de rock, de Jair de Taumaturgo, na Rádio Mayrink Veiga, montou conjuntos semiprofissionais, Os Instantâneos e Os Filhos do Sol, para animar bailes de favela. O inglês cantado era pura embromation. Com uma camisa cor-de-rosa de gola alta, confeccionada pela mãe, dona Eurídice, apresentou-se em concursos de calouros defendendo o repertório de Roberto Carlos (mais tarde, em uma de suas interpretações mais marcantes, gravou “Negro gato”, canção renegada pelo supersticioso Rei). 

Para que a música dos bambas do Estácio chegasse ao rádio, no fim dos anos 1920 e começo dos 30, dois cantores já consagrados foram fundamentais, Francisco Alves e Mário Reis, que farejaram o ouro. Sem falar que, no mesmo rastro, um branco de classe média da Vila Isabel, chamado Noel Rosa, também se introduziu no grupo. 

No caso de Luiz — que, fissurado pelo violão e pelos versos que ia bolando, só estudou até a sexta série ginasial (que corresponde ao atual sétimo ano do ensino fundamental) —, o pulo do gato contou com a colaboração de duas antenas da contracultura na década de 1960: o poeta e agitador cultural Waly Salomão (que fazia incursões exploratórias no São Carlos com o artista Hélio Oiticica) e o jornalista e letrista da Tropicália Torquato Neto, tido como a pessoa que descobriu (ou, ao menos, publicou pela primeira vez o nome de) Luiz Melodia. 

Contudo, o encontro mais impactante de todos, em 1971, foi com a musa do desbunde: “Lembro que quando a Gal, aquela mulher linda e gostosíssima, sentava na minha frente de perna aberta, eu não entendia picas. E era uma coisa natural. Tudo aconteceu quando eu já estava quase desistindo da música”, lembrou Luiz numa entrevista. Antes de chegar à casa de Gal, levado por Waly, ele trabalhara como tipógrafo, atendente de bar, vendedor e caixa de loja e servira como recruta em um regimento de cavalaria motorizada em Cascadura. Saiu do Vidigal, onde morava a cantora, com a onda do compositor. Um blues, dilacerado lamento de amor para uma namorada do morro, surpreendeu a todos pela qualidade e elaboração dos versos e da melodia. A música tinha o dedo de Waly, que sugeriu a troca do título em inglês — “My Black” por “Pérola Negra”, expressão que já estava na letra e era o apelido de um travesti do Estácio. 

Correndo, Gal Costa encomendou ao novato uma composição para incluir no repertório do histórico show “Fa-tal”. De sem-pulo, Luiz compôs “Presente cotidiano”, já com sua dicção: 

Tá tudo solto na plataforma do ar
Tá tudo aí, tá tudo aí
Quem vai querer comprar banana? 

Mas a música foi vetada — o que será que os censores da ditadura viram de tão condenável nas bananas? Waly então sugeriu “Pérola Negra”. A canção fez tanto sucesso que, depois de registrada ao vivo por Gal, também foi gravada por Ângela Maria no mesmo ano de 1971. A turma do Estácio fez festa. Como hoje sentirá orgulho ao ler a biografia da “cria”.

Quem escreveu esse texto

Alvaro Costa e Silva

É colunista da Folha de S.Paulo e autor de Dicionário amoroso do Rio de Janeiro (Casarão do Verbo)

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.