Música,

Em algum lugar entre o tudo e o nada

Filósofo francês discorre sobre o ‘não-sei-quê’ que move os compositores, fenômeno inexprimível em palavras

01maio2019

Há quase dois milênios e meio, Platão enxergou uma relação direta entre a música e o comportamento humano. Postulou que o cultivo de certa música era capaz de suavizar a alma, mas que não devia se estender além do ponto em que suavizasse seu elemento irascível, sob pena de que a coragem se dissolvesse. Abriu-se um perigoso precedente: quando se diz o que a música deve ou não ser, daí para “arte degenerada” é um pulo. 

É esse episódio de moralização da música em detrimento dela mesma o ponto de partida do livro A música e o inefável, de Vladimir Jankélévitch, publicado na França em 1983 e traduzido em 2018 para o português. Embora a relevância do livro não se restrinja a isso, o momento de sua publicação no Brasil é especialmente oportuno.

Catedrático de filosofia moral na Sorbonne de 1971 a 1978, Jankélévitch foi aluno, discípulo e biógrafo de Henri Bergson, cuja influência é perceptível na obra, sem que os dois autores jamais se confundam. Nietzsche também está presente, principalmente nas constantes remissões à Grécia antiga e no tratamento dado à música pelos gregos, embora em termos nem sempre elogiosos.

Como não poderia deixar de ser, a polissemia do termo “inefável” no título — “o indizível e inexprimível”, “o que pode ser acessado, mas não pode ser significado” e, por extensão, “o prazer inenarrável” — é justamente um traço de união entre os textos que compõem o livro.

Jankélévitch mostra que, desde que se abandone qualquer pretensão de decodificação, escrever sobre música é enriquecedor

Ao mesmo tempo, esse termo marca claramente e de certa forma sintetiza a posição de Jankélévitch em relação à música, tratando de separá-la tanto quanto possível das palavras. Se a música nada significa, isso não quer dizer que não produza um efeito, mas justamente que esse efeito não é redutível a um conteúdo linguístico significante. Nem submissa à palavra e redutível a ela, nem superior à palavra e capaz de revelar o invisível metafísico: a música segue suas próprias regras, diferentes das do discurso.

Há um aforismo, atribuído a diversas personalidades, mas provavelmente cunhado pelo humorista Martin Mull, que diz: “Escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura”. Embora a frase não seja de Jankélévitch, exemplifica bem sua crítica à verborragia de musicólogos e filósofos que, evitando falar sobre o indizível da música, falam da “filosofia do vizinho”, isto é, uns dos outros, terminando por tomar parte em disputas tão intermináveis quanto estéreis. Uma vez feita essa crítica mordaz ao que chama de doxografia, Jankélévitch tem de enfrentar a questão: se não isso, então o quê? 

Numa escrita que possui a rara combinação entre rigor teórico e leveza, o que faz com que possa ser lida com igual proveito por especialistas ou não, Jankélévitch mostra que, desde que se abandone de saída qualquer pretensão de esgotamento e decodificação, escrever sobre música é possível, válido e enriquecedor. Assim, toma para si a tarefa de se debater contra o senso comum, que é por vezes até alimentado pela filosofia e permeado há milênios pelo que o autor chama de “rancor contra a música”. Escrever sobre música é denunciar preconceitos, o que torna o livro, mais do que oportuno, necessário. 

Jankélévitch enfrenta, uma a uma, as bestas monstruosas que tomam a música como refém: a moralização de sua estética, a suposta subserviência à intencionalidade de um sentido, a obrigação monumental de explicar o invisível metafísico, a esquiva da filosofia em tratar do tema diretamente, entre tantas outras. Nesse percurso, são deliciosos os exemplos que dá: casos dos compositores Fauré, que analisa suas obras anos depois para “descobrir” que usa determinada escala modal, e Prokofiev, que se utiliza de construções atonais antes mesmo de ter se interrogado conscientemente sobre a crise da tonalidade. Ambos seriam movidos por um “não-sei-quê” que lhes recomenda o que fazer e como criar, um “não-sei-quê” que nada quer dizer, mas funciona. Não à toa, Jankélévitch lhe dedica um outro volume, Le je-ne-sais quoi et le presque rien [O não-sei-quê e o quase nada], ainda sem tradução em português.

Diz Fernando Pessoa que o mito é “o nada que é tudo”. Mas, entre esses dois pontos, existe outra coisa: “Algo de difluente e enevoado em que a voz da natureza e a voz da humanidade ainda são indistintas, algo que não é mais o caos, nem o planisfério do mundo: esse algo é a ordem eficaz e irracional da música”.  

Quem escreveu esse texto

Pedro Taam

É pianista e doutorando em filosofia na PUC-SP. É autor da dissertação Dmitri Shostakovich e a Sétima Sinfonia – "Leningrado": Micropolítica e máquina de guerra (2018)