Literatura,

Traumas sombrios

Romance explora a relação de abuso sexual entre professor e adolescente pelo olhar da vítima

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

As manchetes anunciariam algo assim: “Estudante de quinze anos acusa o professor de abuso após ser estuprada na casa dele”, ou “Explode escândalo de pedofilia de professor em relacionamento ilegal com aluna”. Mas não houve manchete, não nesse caso. Aos quinze anos, Vanessa Wye, estudante de um colégio interno de elite, foge do dormitório para se encontrar com o professor de literatura inglesa de 42 anos, Jacob Strane. Em sua casa, a geladeira está abastecida com o que ele supõe serem as comidas preferidas dela — sorvete, batata chips, Coca de cereja — e, uma vez no quarto, ele lhe entrega um pijama de algodão com estampa de morangos. Na mochila, Vanessa tinha guardado uma camisola de seda preta que roubara da mãe, sua ideia de sensualidade adulta. 

Quando Strane começa a tocá-la, pergunta se está tudo bem e pede permissão para determinados atos — até certo ponto. Pouco depois de afirmar que não passariam do sexo oral naquela noite, ele a força, mesmo que ela relute, se arrepie de repulsa, chore e permaneça imóvel. Como na primeira vez em que Strane tocou seu joelho, em plena sala de aula, Vanessa diz para si mesma que não é nada, não é ninguém. Nem sequer se sente humana.

Vanessa e Strane poderiam ser um dentre inúmeros casos de abuso entre adultos e crianças ou adolescentes em qualquer parte do mundo. Aqui, são personagens de Minha sombria Vanessa, romance de estreia de Kate Elizabeth Russell, cuja narrativa percorre diversos momentos na vida da protagonista, da adolescência à idade adulta. Vanessa viveu anos se esquivando das verdades sobre a essência abusiva de seu relacionamento com Strane. Ela se desviava de palavras, como pedofilia, abuso e estupro porque “engoliam” o longo envolvimento com o professor; romantizava lembranças, devorava ilusões e desafiava percepções contrárias, tudo para garantir que o relacionamento não fosse reduzido a uma história de coerção, manipulação e violência. Para Vanessa, aquilo era um romance proibido e ela seria a exceção pela qual Strane ousou arriscar carreira, reputação e sanidade mental.

Para Kate Elizabeth Russell, o enredo de seu livro também começou como uma história de amor, e não um exame rigoroso das consequências do trauma, os efeitos do silêncio e os resultados de um processo duradouro de distorção cognitiva engendrado por uma figura dominadora. Após anos de reescrita e reflexão, a autora ajustou e amadureceu sua abordagem, em um movimento similar ao que acontece com Vanessa — que, tempos depois, se confronta-se para avaliar como remodelava os acontecimentos para interpretá-los da forma menos negativa possível.

Ao pensar na relação, a personagem principal se fragmenta entre os papéis de vítima e cúmplice

Minha sombria Vanessa interpela a assimilação e o enfrentamento do trauma de modo quase didático, expondo como o abuso vivenciado desde a adolescência desencadeou fortes reações psicológicas em Vanessa e esclarecendo os métodos de aproximação e sedução empregados por Strane. “Você é especial”, o professor repetia desde o começo. Ele percebeu como Vanessa era inexperiente, solitária e sedenta por atenção naquele momento e se aproveitou da posição de confiança e autoridade que ocupava para alcançá-la. A influência de Strane constrói Vanessa, e ele pouco se importa com o futuro traumático que a espera.

Justamente no período em que formava sua personalidade, a Vanessa adolescente é invadida pela sexualidade adulta de Strane e fica vulnerável às suas manipulações emocionais. Não só ela seria especial, mas estaria o tempo todo no controle: poderosa, sedutora e capaz de destruir um homem com um simples telefonema. À medida que crescem as pressões sobre o relacionamento, Strane agrava também suas intimidações e ameaças para garantir cooperação e lealdade irredutíveis. Ele sussurrava “Você é tão maleável”, e Vanessa preferia tomar isso como um elogio a desmascarar o abuso. Doía menos.

O mal da vítima

Ao pensar na relação, a personagem principal se fragmentava entre os papéis de vítima e cúmplice. O psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, ao estudar em 1933 a experiência de crianças com o abuso, afirmou que seria mais suportável para elas assumirem a responsabilidade do que correr o risco de perder o objeto de amor e identificação. Elas introjetam os sentimentos de culpa do adulto perpetrador, forçando-as a lidar sozinhas com a vivência traumática. Como todo abuso sexual é, antes de mais nada, um abuso de poder, tal imposição configura uma espécie de obrigação moral para a vítima, submetida a um sujeito superior em maturidade, força e experiência. Talvez seja graças a esse processo que Vanessa, ao longo do livro, chegue tão perto de reconhecer o trauma desencadeado por seu relacionamento com Strane, apenas para recuar e alegar que implorou pelas investidas do professor.

A narrativa de Russell dialoga com o contexto atual de evolução dos debates acerca de consentimento e abuso sexual, e levanta reflexões pertinentes sobre o sistema de conivência. Indignar-se com a inação generalizada é um sentimento comum a leitores que se debruçam sobre experiências de abuso, sobretudo as não ficcionais. No início deste ano, a França foi provocada pela publicação de um relato real de confronto ao trauma. Em Le Consentement (O consentimento), Vanessa Springora revelou o relacionamento abusivo que viveu com o escritor Gabriel Matzneff e, de quebra, expôs a conivência histórica da sociedade francesa quanto à liberdade de ação concedida a pervertidos, pedófilos e assediadores, especialmente se forem da classe artística — Matzneff foi laureado com o Renaudot, prestigiado prêmio literário, em 2013. Springora conheceu o escritor, então cinquentenário, em um jantar quando tinha treze anos. No livro e em suas entrevistas, ela faz questão de reforçar a desigualdade que desequilibra e torna vulnerável qualquer adolescente perante um homem de meia-idade.

Minha sombria Vanessa está permeado por questões políticas e culturais de amplo escopo. Ao contrário do que transparece à primeira vista, contudo, elas extrapolam os debates sobre violência sexual e as nuances do consentimento. Antes de sua publicação nos Estados Unidos, o livro motivou uma discussão intensa nas redes sociais em torno da possível apropriação por Russell de elementos presentes em Excavation (Escavação), as memórias de Wendy C. Ortiz, uma escritora norte-americana de ascendência mexicana sobre o relacionamento abusivo que sofreu quando jovem com seu professor. A disputa nos permite refletir sobre quais narrativas são privilegiadas pela indústria editorial e quais experiências são merecedoras de adiantamentos milionários e do apoio de uma feroz máquina publicitária.

Em 2014, Ortiz finalmente encontrou uma pequena editora disposta a publicar seu livro e lidou com todo o processo de divulgar a obra sozinha. No ensaio que escreveu para abordar o debate em torno de Minha sombria Vanessa, ela cita as justificativas dadas pelas grandes editoras quando recusavam suas memórias: basicamente, aqueles que respondiam elogiavam a escrita poderosa da autora e afirmavam o quanto sua história era importante, mas julgavam que seria difícil encontrar audiências significativas para ela. Ortiz não acusou Russell de plágio. Sua condenação foi mais abrangente. Ao identificar as semelhanças entre o enredo de Minha sombria Vanessa e Excavation, quis denunciar a exaltação de uma obra de ficção repleta de paralelos com uma realidade de sua vida e de incontáveis mulheres, boa parte delas não branca e excluída dos discursos da mídia tradicional. A desigualdade de tratamento entre narrativas como essas evidencia o racismo estrutural dos sistemas literário e editorial.

Idealmente, um livro não excluiria o outro. Ambos atestam a universalidade do abuso, lidam com a culpabilização de sobreviventes e enriquecem o debate sobre como o consentimento está condicionado a relações de poder. Ocupar-se de tais problemáticas enraizadas na sociedade contemporânea, porém, não é exclusividade de Minha sombria Vanessa. Os argumentos de Ortiz são inescapáveis: ainda não aprendemos a realmente ouvir e reconhecer como legítimas as diferentes experiências de abuso e trauma. 

Quem escreveu esse texto

Virginia Siqueira Starling

Prepara uma biografia de Zuzu Angel para a Todavia.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.