Crítica Literária,

Filosofias da valentia

Luiz Roncari tenta compreender o pano de fundo político e social sobre o qual se insere a saga de Riobaldo em “Grande Sertão: veredas”

29out2018 | Edição #16 out.2018

Tive a sorte de ler Grande sertão: veredas pela primeira vez, há quatro décadas, sem saber nada a respeito do romance. Estava só curiosa com sua fama. A leitura foi um alumbramento, do começo ao fim. Ou quase até o fim: fiquei decepcionada, e furiosa com o autor, por causa da revelação final a respeito de Diadorim. Achei covardia; uma espécie de “gol de mão” para salvar aquele jogo perigoso, aos 39 minutos do segundo tempo. Desprezei o casamento de Riobaldo com Otacília e a paz domesticada do jagunço, no capítulo final. 

Meu desgosto foi tão radical que, nas vezes seguintes, abandonava a leitura antes do desfecho da batalha final contra o bando do Hermógenes. Mas nem a decepção com o que me pareceu uma covardia do autor (perdão, leitores!) me fez deixar de considerar o Grande sertão o livro mais bonito do mundo. Talvez, pelas mesmas razões, não tenha me interessado pela fortuna crítica do livro. Quis conservar meu alumbramento de leitora ingênua. 

Peço, pois, licença aos especialistas para resenhar este Lutas e auroras, de Luiz Roncari, que analisa Grande sertão: veredas com a clareza de quem reconhece, mas não se deixa contaminar pela magia que caracteriza a narrativa de Rosa. Mantém sua autonomia crítica diante do grande escritor, com objetividade e clareza. Diante da “alternância entre pensamento e ação” que caracteriza o texto rosiano, o autor pende para o primeiro termo. E insere o romance na corrente de uma crítica literária que não recusa a compreensão do pano de fundo político e sociológico sobre o qual se desenrola a saga do jagunço Riobaldo e seu bando de “valentes” — entre os quais se destaca o misterioso Diadorim. 

Mas Roncari não exclui de sua análise os aspectos psicológicos do romance. Ele compreende que a história que o chefe jagunço narra ao “Doutor” é a saga de um homem em busca de compreender quem ele é. Um homem valente em luta consigo mesmo, em função da enorme atração que sente por outro homem, tão ou mais valente que ele. Um matador de pontaria infalível, que mesmo assim é capaz de tiradas de alto lirismo ao descrever as águas dos rios, as cores da aurora, o mais leve tremor de seu cavalo. Um jagunço-poeta. O que, aliás, não é estranho às formas do “bem dizer” características da cultura oral, que ainda hoje sobrevive no Brasil. 

Brasil profundo

Destaco a atenção que o autor dedica às passagens em que Riobaldo relata a seu interlocutor cenas pungentes do abandono do Brasil profundo  — do qual o sertão é metonímia perfeita — nas primeiras décadas da República Velha. São passagens em que o bando de jagunços se encontra com personagens que vagueiam, abandonados, pelo sertão inóspito. Ou onde se revela a ruína de vilarejos em que outrora houve vida, abundância, alegria. Passagens que entristecem o leitor, neste momento em que o país se vê diante da perspectiva desse mesmo abandono por conta da retomada do poder por uma versão ainda mais degradada daquelas velhas oligarquias. 

O autor enriquece a análise ao articular ‘Grande Sertão’ com o cenário político do Brasil na década de 1930

Roncari se volta com frequência para o cenário de misérias, com foco em suas vítimas mais frágeis. Ao analisar a passagem do bando de Riobaldo pelos domínios de Seô Habão, de cuja casa o menino Guirigó teria roubado alguma coisa sem valor, Roncari observa que o ponto de vista do fazendeiro “reduzia tudo ao econômico” (para espanto de Riobaldo). Seô Habão seria, nas palavras de Roncari, “homem de um mundo desencantado, onde o mistério tinha se reduzido a nada”. É um personagem em que o autor identifica o mesmo “espírito novo do capitalismo” que se encontra no conto de Rosa “A volta do marido pródigo”, publicado em Sagarana

O autor também enriquece sua análise ao articular a narrativa de Grande sertão com o cenário político do Brasil na década de 1930. Alguns acontecimentos se encontram camuflados entre as referências de Rosa. Há comparações entre o bando de Riobaldo e, mantidas as diferenças, o de Antonio Conselheiro. Ele se refere à entrada do bando de Riobaldo na fazenda Barbarana com a entrada triunfal de Vargas no Rio de Janeiro, quando o gaúcho amarrou seu cavalo no obelisco da avenida Rio Branco. Em nota, o autor complementa sua análise sobre a “novidade” da política de Vargas que a cena de Riobaldo pretende analisar ou pelo menos, evocar, citando o general Nelson de Melo: “Foi Getúlio quem reconciliou o povo com o governo. O povo estava com ele; a elite, não”.

Mas antes da segunda passagem pelos domínios de Seô Habão, situa-se a tentativa que Riobaldo faz de pactuar com o diabo. Tentativa que parece frustrada, embora o jagunço saia dela diferente: algo nele se transformou. Ele compara o acontecido com “um rio que viesse adentro a casa de meu pai”. Um rio mais forte que um pai. Um rio simbólico: “Rio, pau enorme, nosso pai”, diz a canção de Caetano Veloso. A potência seria da palavra, do pensamento. E potência das águas, que coloca mesmo um homem forte e valente em “seu lugar”: vulnerável. 

O que, diga-se, demanda de Riobaldo valentia ainda maior. Mas Roncari chama a atenção do leitor para o fato de que a “valentia” que Rosa atribui a seu herói não é isenta de bondades. Ele recua ante a possibilidade de estuprar a filha de “seô” Ornelas. Permite a Felisberto, o jagunço que sofre de crises de asma, ficar no bordel Verde Alecrim, a pretexto de garantir a segurança das meninas que trabalham lá.

Para minha surpresa, em Lutas e auroras o amor entre Riobaldo e Diadorim comparece de forma discreta. Minha primeira leitura, romântica, de Grande Sertão se viu diminuída aqui, com grata surpresa. No fim do livro, Roncari destaca a substituição dos “traços épicos” de Diadorim (na narrativa de Riobaldo) “pelos do herói do romance moderno: ambiguidade, instabilidade, dubiedade, contraditoriedade”. Encerro com outra observação: Graciliano Ramos, autor contemporâneo de Rosa e de estilo oposto, rejeitava o uso dos pontos de exclamação na literatura: “Não sou homem de ficar me espantando à toa”, teria dito. Mas as duas exclamações de Riobaldo ao assistir o assassinato do amor/amigo — “Diadorim!” […] “Diadorim!” — me parecem, até hoje, as mais imprescindíveis da literatura brasileira.  

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #16 out.2018 em outubro de 2018.