Crítica Literária,

A hora e a vez de Graciliano

Duas novas publicações jogam luz em aspectos menos conhecidos do autor de “Vidas Secas”

07nov2018

Nascido em Alagoas, Graciliano Ramos foi preso pela polícia de Vargas em 1936; ao sair da cadeia, colaborou na principal revista do Estado Novo, a Cultura Política; mais tarde, filiou-se ao Partido Comunista, no qual militou até o fim da vida. Esse percurso contraditório consubstancia a dependência dos intelectuais em relação ao Estado nos anos 1930-40, mas também a louvável opção, em tempos de polarização ideológica, pela militância combativa, enfrentando dogmas à direita e à esquerda.

No âmbito da crítica, persistia certa aura hagiográfica que exaltava a “integridade absoluta” de Graciliano, neutralizando as implicações ideológicas de suas obras. Felizmente esse quadro vem se alterando, e duas publicações sinalizam tal inflexão: Graciliano Ramos e a Cultura Política: mediação editorial e construção de sentido, de Thiago Mio Salla, e Graciliano Ramos: muros sociais e aberturas artísticas, coletânea organizada por Benjamin Abdala Jr. 

O livro de Salla, baseado em exaustiva pesquisa documental, ilumina um aspecto menos conhecido do Velho Graça: a produção jornalística, incluindo crônicas de quando assinava com pseudônimos, como Soeiro Lobato, J. Calisto e Anastácio Anacleto. Supre-se assim uma lacuna bibliográfica, em especial se considerarmos o agrupamento pouco criterioso (inclusive nas edições recentes) das crônicas de Linhas tortas e Viventes das Alagoas.

No segmento mais instigante do livro, o crítico se detém nos textos da Cultura Política, de quando o escritor passou a colaborar com o mesmo governo que o prendera cinco anos antes. Sem recair no simplismo apologético ou na visada condenatória, Salla revela como Graciliano deu a seus textos uma ambivalência que lhe permitiu certa mobilidade em relação às diretrizes ideológicas a que, aparentemente, teria de se submeter. A análise de crônicas menos conhecidas torna o livro uma referência para os interessados nas interseções entre literatura, política e jornalismo.

A capacidade de Graciliano de vislumbrar “possibilidades de abertura” no interior de um universo opressor também norteia Graciliano Ramos: muros sociais e aberturas artísticas. O conjunto de ensaios, bastante heterogêneo, dialoga com diversos autores. No surpreendente “Faulkner e Graciliano: pontos de vista impossíveis”, Ana Paula Pacheco aponta as similaridades formais entre Vidas secas e Enquanto agonizo, que narram de maneira fragmentada a trajetória de camponeses pobres em meio à modernização dos anos 1930, e demonstra como, em meio às oscilações do narrador de Vidas secas — que ora se aproxima dos desvalidos, ora faz questão de reafirmar seu lugar de classe — o único ponto de vista estável no romance é o de Baleia. Aqui surge a “abertura” possível no mundo concentracionário de Graciliano: as “reflexões” da cachorrinha à beira da morte, acompanhadas de perto pelo narrador, revelariam uma noção comunitária da vida e do trabalho que prefiguraria, em negativo, o reino da liberdade.

As “reflexões” de Baleia apontam para uma noção comunitária da vida e do trabalho 

“Romance e tela: Paulo Honório, o ‘pobre-diabo’”, de Anna Carolina Takeda, ao comparar o romance São Bernardo com o filme homônimo de Leon Hirszman, conclui que o cineasta conseguiu enfatizar mais ainda do que o romance a vida miserável dos trabalhadores do campo a fim de dialogar com um contexto (o da ditadura civil-militar) em que o universo do trabalho sofria, como hoje, brutal ataque e repressão.

De modo geral, ambos os volumes apresentam discussões que iluminam o presente, quando a face do país autoritário mais uma vez se mostra a descoberto. Graciliano e sua obra, em virtude da extrema lucidez e combatividade, mas também das contradições que expõem, servem de inspiração nestes nossos tempos sombrios.

Quem escreveu esse texto

Fabio Cesar Alves

É autor de Armas de papel: Graciliano Ramos, as Memórias do Cárcere e o Partido Comunista Brasileiro (Editora 34).