Crítica Literária,

Estrada para todas as descobertas

Coletânea joga luz sobre um ensaísta esquivo

07nov2018 | Edição #1 mai.2017

Os brilhos todos é o título perfeito para uma coletânea de Alexandre Eulalio. Adjetivo, diz da qualidade superior de sua escrita e de seu pensamento. Substantivo, remete à cintilação de ideias provocada por uma prosa que envolve seu objeto sem aprisioná-lo, dando a ver as variadas possibilidades de leitura que suscita.

Diletante nessa terra de dotô, fino estilista vacinado contra o jargão, Alexandre Eulalio é artigo que não se imita — pela curiosidade intelectual onívora, pela capacidade de processar referências e, principalmente, pelos raros e surpreendentes raciocínios plásticos, de alta densidade literária. Tributário da dispersão, remédio e veneno do ensaísmo, levou a vida literária que escolheu, a de “escritor esquivo”. Lançou em vida um único livro, o inclassificável A aventura brasileira de Blaise Cendrars (1978), e deixou tantos outros entre revistas, jornais, catálogos e gavetas.

Escritos, organizado por Berta Waldman e Luiz Dantas, inaugurou em 1992 uma essencial bibliografia póstuma. Com Maria Eugenia Boaventura ou sozinho, Carlos Augusto Calil seria o responsável por O livro involuntário (1993), Tempo reencontrado (2012) e duas edições dedicadas a ele, em 1993 e 1999, da Remate de Males, revista do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, onde Eulalio ensinava quando morreu, em 1988, dias antes de completar 56 anos de idade.

Esta breve biblioteca ganha agora, de novo pelas mãos de Calil, a recolha de 41 textos — inéditos em livro ou dispersos por diversas publicações — que se encaixam no espichado subtítulo: “ensaio, crônica, artigo, entrevista, apresentação, nota, crítica, resenha, poesia etc.”.

Produzidos ou publicados entre 1952 e 1987, os textos dificilmente dão a ver uma formação intelectual linear, não se perfilam numa rua de mão única rumo à maturidade. São antes vizinhos num emaranhado de caminhos em que o crítico iniciante, autodidata que trocou a faculdade de filosofia pela errática disciplina do ensaísmo, ombreia-se em acuidade e audácia com o professor legitimado por seu “notório saber”. É o jovem que contempla Graciliano Ramos morto e especula sobre sua improvável salvação espiritual: “Aquela impaciência amarga para com a injustiça social que o fez aderir à causa da revolução havia serenado de todo. Seria somente a consciência da tarefa cumprida? É pouco para tanta calma. Graciliano mereceria mais, havia muito mais necessidade de infinito nas linhas severas de seu rosto”.

Ou o retratista literário celebrando Le Corbusier e seu “lirismo de baixo profundo”: “A nitidez parece ter sido aquilo que buscou sempre, antes de mais nada. Filho e neto de relojoeiros, transpôs a precisão suíça — que em Klee se organizaria num universo miniaturista — para o campo pendular das grandes massas limpas. Nascido na mesma cidade que Calvino, a severidade chamava-o de todos os lados”.

Curiosidade ciclópica 

Eulalio passeava entre gêneros literários e níveis de cultura. Quando processados por sua curiosidade ciclópica, limites entre disciplinas e hierarquias pareciam provisórios. É natural, portanto, que no livro convivam, como velhos conhecidos, santa Teresinha e Beatles, Le Corbusier e Macunaíma, Clarice Lispector e George Stevens, Guignard e Nelson Rodrigues, Borges e Eckhout. Ele sintetiza essa errância, própria do ensaísmo, ao comentar os Exercícios de leitura, de Gilda de Mello e Souza, aludindo a um “autoconhecimento coletivo”, “estrada para todas as descobertas” que aproxima quem lê de quem escreve, como se juntos percorressem um território desconhecido.

Quase trinta anos depois de sua morte, Alexandre Eulalio é quase tão pouco conhecido quanto o foi em vida. A história literária brasileira reservou a ele uma margem que, afinal, era um de seus territórios favoritos. Foi lá que encontrou, por exemplo, Brito Broca (1903-61), jornalista e crítico a seu tempo também interessado, por gosto e vocação, pela periferia de grandes nomes, obras-primas e altas literaturas. A nota de rodapé em que hoje é confinado pode parecer exílio mas, aposto, é para ele paraíso. É de lá que seu fantasma se diverte, com fina ironia, diante das piruetas conceituais da academia ou da triste crítica prescritiva. Alexandre Eulalio é o maior crítico menor brasileiro. E esse é, para ele, um baita e intransferível elogio.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).

Matéria publicada na edição impressa #1 mai.2017 em maio de 2017.