Biografia,

Lendas de amor e intelecto

Nova biografia de Simone de Beauvoir desmente episódios de sua vida e desacredita o mito de que foi um acessório de Sartre

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

Mais uma biografia de Simone de Beauvoir — salvo engano a quarta, descontado o ensaio semibiográfico da norueguesa Toril Moi, Simone de Beauvoir: The making of an intellectual woman, editado em 1994. Pelo menos duas foram aqui traduzidas nos últimos quarenta anos, a primeira assinada por Claude Francis e Fernande Gontier, a segunda, por Lisa Appignanesi. Quem leu a biografia escrita em inglês por Deirdre Bair (1990) e o ensaio de Moi, ambos especialmente enriquecidos pela leitura de cartas e outros documentos inacessíveis às demais simoneólogas, talvez se sinta menos estimulado a enfrentar as quatrocentas páginas de Simone de Beauvoir: uma vida, de Kate Kirkpatrick. Coragem. Seu esforço será recompensado.

Beauvoir, que trabalhava em um programa sobre música na Idade Média, no ar em 1945 [Coleção Sylvie Le Bon de Beauvoir/Distribuição Gallimard/Divulgacão]

A britânica Kate Kirkpatrick, que já publicara ensaios sobre Sartre e o misticismo e Sartre e a teologia, beneficiou-se de cartas e diários dos tempos de Beauvoir estudante liberados depois de Moi e Bair concluírem suas biografias, em especial das cartas do cineasta Claude Lanzmann, o único de seus amantes a quem tuteava, talvez por ele ser dezessete anos mais jovem do que ela. Seu livro acrescenta, relativiza e desmente um punhado de episódios da vida de Simone, antes e depois de seu perene engagement com o sumo pontífice do existencialismo. A principal intenção da autora é desacreditar o mito de que Simone não foi mais que um acessório de Sartre. Ele, Pigmaleão; ela, Galateia. 

Beauvoir precisou menos de Sartre para tornar-se Simone do que nos fez crer a imprensa mundial

Essa visão estereotipada do casal, que só nas últimas décadas começou a ser revista, com a descoberta de uma Beauvoir mais autônoma, brilhante, radical, parceira crítica do projeto existencialista, não foi construída apenas pela imprensa de penchant frívolo e sensacionalista (a revista Paris Match reduziu-a a “lugar-tenente” de Sartre quando saiu o volume dois de O segundo sexo, que, aliás, não poucos julgaram uma “obra derivativa”, um “existencialismo para mulheres”), mas até por escritoras de nível, como a inglesa Angela Carter, para quem “toda mulher pensante do mundo ocidental deve ter-se perguntado uma vez ou outra por que uma garota legal como Simone está perdendo tempo bajulando um velho peidorreiro e chato como Sartre”.

Beauvoir precisou menos de Sartre para tornar-se Simone do que nos fez crer a imprensa mundial, sem exclusão de jornais progressistas, como o pariense Le Monde, cujo obituário de Simone exalava sexismo em todas as vírgulas. Os cadernos de Beauvoir de 1929 pintam uma imagem da gênese do relacionamento dos dois um pouco diferente da que ela própria tornou pública por escrito e em entrevistas. Os defeitos dele, eliminados nas memórias, vieram à tona nos diários. Não é verdade que quando ela, 21 anos, conheceu Sartre, 23, ele monopolizou, de imediato, o seu coração. Na primavera daquele ano, ela já era amiga íntima de René Maheu, o “Herbaud” das memórias de Simone e o “Lama” dos seus diários. 

Maheu formava com Sartre e o futuro romancista Paul Nizan um fraternal trio de normaliens. Era casado, mas pulou a cerca por Simone, que o abordou pela primeira vez na Biblioteca Nacional. Foi ele quem lhe deu o cognome de “Castor”, adotado por Sartre. Castor, em inglês, é beaver. Beaver = Beauvoir. 

“Um delicioso e caótico ensopado.” Assim ela descreveria os primeiros anos com a patota sartriana. A certa altura, o quarteto virou trio, a bem dizer um triângulo, ao estilo Jules e Jim. Até que Sartre deu o bote. “Ele me compreendeu, me previu e me possuiu”, anotou ela em seu diário, treze dias depois de conhecê-lo.

Compartilhavam as mesmas atitudes e ambições, a mesma intensa paixão por filosofia, literatura e política. Encontravam-se todas as manhãs nos Jardins de Luxemburgo. Fuxicavam os livros dos bouquinistas à beira do Sena, liam e discutiam Marx, Engels, Faulkner, Kafka e diversos daqueles autores de língua inglesa (Whitman, Blake, Yeats, Virginia Woolf, Sinclair Lewis) tão caros a Simone. Mais que um namorado, Sartre foi o “amigo inseparável do seu pensamento”. E que, ainda por cima, cantava “Old Man River” só para ela. 

Juras de amor eterno houve, mas nada de casamento. Ele prezava a liberdade total mais do que tudo, e Simone não tinha dote (sim, foi o que ela alegou, numa entrevista, já no fim da vida). Antes de conhecê-lo, Castor já concluíra que o casamento era uma instituição imoral. E também uma prisão para quem almejava uma ambiciosa carreira como filósofa e escritora.

Terceiros contingentes

“Vamos assinar um contrato de dois anos”, propôs Sartre, do lado de fora do Louvre, no outono de 1929. O mais controverso pacto amoroso do século passado previa relacionamento livre para ambas as partes, infidelidade sem culpa nem castigo e — eis o busílis — a aceitação de “terceiros contingentes”, designação pedante de amantes eventuais, não necessariamente passageiros e de mão única. 

Numa das cartas só reveladas em 1988, Simone manifestou um leve desprezo pelas “terceiras contingentes” de Sartre, não apenas por aquelas alunas que repassou para o companheiro, mas sobretudo pelas outras que não participavam do ménage à trois. Sartre, segundo ela, preferia a sedução ao sexo. Para ele, o desejo sexual obnubilava e comprometia a liberdade.  

Aturdida com a maneira como o casal tratava seus amantes contingentes, a filósofa, psicanalista e escritora feminista Julia Kristeva tachou Sartre e Simone de “terroristas libertários”. Kirkpatrick aprofunda o debate, sem não-me-toques moralistas. Só usa a expressão “libertina sexual” porque foi nesses termos que Beauvoir foi tratada pela mídia. 

Com o primeiro sexo Simone teve cinco relacionamentos assumidamente sérios na vida. Por ordem de entrada em cena: Maheu (mas não se sabe se foi a ele que Simone entregou sua virgindade “com alegre abandono”, como descrito em A força da idade), Sartre, Jacques-Laurent Bost (nas memórias, Simone escondeu seu amor por ele), o escritor americano Nelson Algren e Lanzmann.

Sartre se engraçou com as três jovens ex-alunas — Olga Kosakiewicz, Bianca Bienenfeld e Nathalie Sorokine — que, de meados dos anos 1930 ao início dos 40, foram amantes de Beauvoir. Às vezes ao mesmo tempo, às vezes com sucesso. Filha de um nobre russo e uma francesa, Olga foi celebrada em A força da idade, virou personagem no romance A convidada e aparece como Ivitch em Os caminhos da liberdade, de Sartre. Mais tarde se casaria com Jacques-Laurent Bost, que nunca lhe falou de seu affaire com Simone.

“Dada a filosofia que ela mais tarde escreveria e os legados duradouros dessas relações em sua vida pessoal e reputação pública, é muito difícil não nos perguntarmos: o que ela tinha na cabeça?”, escreve Kirkpatrick. Muita coisa. Simone nunca foi mero apêndice de Sartre, e sim um elemento vital de sua vida e sua obra, sua guardiã, sua confidente, sua consciência crítica, e uma fonte de inspiração ininterrupta. Pena que as observações por ela anotadas no manuscrito de A náusea, acatadas por Sartre, tenham sido jogadas no lixo — não por ele, por ela. Mais: Sartre teve o estalo da teoria do tempo desenvolvida em O ser e o nada ao ler aquela passagem de Pierre no quarto de Xavière em A convidada.  

Simone nunca foi mero apêndice de Sartre, e sim um elemento vital de sua vida e sua obra

Para Kirkpatrick, Sartre e Simone sucumbiram ao “orgulho espiritual”; acreditavam-se “radicalmente livres”, mas, na verdade, foram vítimas de várias ilusões. Não reconheciam nenhuma obrigação emocional para com os terceiros contingentes, mas, quando necessário, os ajudaram financeiramente, deram-lhes teto e comida. 

Não tinham muito dinheiro, e encaravam o luxo com desdém. Não viam sentido em buscar coisas que não estavam ao seu alcance. Optaram por cultivar as riquezas de uma imaginação compartilhada, “estocando histórias, ideias e imagens: quando não era literatura, era Nietzsche, Marx, Freud ou Descartes, pontuados regularmente por idas a galerias ou ao cinema”.

Vivendo separados, mas sempre juntos, nem a morte os apartou. Dividem um túmulo no Cemitério de Montparnasse, em que em abril de 1986 Simone foi enterrada com roupão e turbante vermelhos e, no dedo, o anel que Algren lhe deu.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Augusto

Jornalista, reuniu seus textos sobre cinema em O colecionador de sombras (e-galáxia).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.