i

A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

Yamaluí Kuikuro Mehinaku (Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Biografia,

Tradutor entre mundos

Ao narrar a história do avô, Yamaluí Kuikuro oferece ao leitor não indígena a chance de ver a história do Brasil sob nova perspectiva

13jun2025

Dono das palavras é um marco importante na literatura produzida por autores indígenas no Brasil. Ele se soma a um número crescente de trabalhos dedicados a biografias indígenas, mas a obra de Yamaluí Kuikuro Mehinaku se destaca por ser, possivelmente, a primeira do tipo produzida por um autor indígena brasileiro. Com um estilo que aproxima o leitor das artes narrativas dos kuikuro (um dos povos de língua karib do Alto Xingu), Yamaluí nos convida a acompanhar a história de vida de seu avô, Nahũ, em um livro que mistura memória, política e tradição oral, e desafia a forma como a história do Xingu (e do Brasil) costuma ser contada.

Essa não é uma biografia convencional, na qual o autor assume a responsabilidade de narrar a vida de um outro em terceira pessoa. Além de ter sido escrita por um dos netos de Nahũ, é uma biografia atravessada por uma pluralidade de vozes. Apresentados em um texto bilingue e no estilo das akinha (histórias, narrativas) kuikuro, as memórias recolhidas por Yamaluí são costuradas em uma cronologia que conecta a vida de Nahũ a eventos marcantes da história xinguana e do indigenismo brasileiro, vistos de lugares e tempos diversos. Graças a uma construção que apresenta as narrativas divididas em linhas, a leitura se desenrola acompanhando um ritmo de fala característico das akinha, resultando em um texto profundamente ancorado em uma tradição oral rica e especializada.

O título do livro, Aki oto/Dono das palavras, é central para a compreensão da figura de Nahũ e da própria obra. Em kuikuro, aki significa “palavra”, e oto significa “dono” ou “mestre”, designando não apenas a posse de um objeto, mas também a posse ou maestria de um conhecimento. Assim, aki oto (dono ou mestre das palavras) se tornou em kuikuro a designação para “tradutor”. Aos olhos de Yamaluí, seu avô Nahũ foi o aki oto primordial do Alto Xingu, não apenas por conhecer a língua dos caraíbas — termo pan-xinguano para designar os não indígenas —, mas por ser o mestre de conhecimentos que viabilizaram a mediação entre mundos distintos em momentos críticos no Brasil do século 20.

Essa não é uma biografia convencional, mas atravessada por uma pluralidade de vozes

A narrativa começa com o nascimento de Nahũ, por volta de 1922. Filho único de Jakalu Jagamü e Hugasa Kuikuro, ele teve um começo difícil: ficou órfão ainda bebê e foi criado pelos irmãos de sua mãe. Sem ser anetü (isto é, membro da chefia ou nobreza hereditária kuikuro), Nahũ não parecia ter muitas condições de se tornar uma pessoa de prestígio. Sua trajetória muda quando, ainda menino nos anos 30, visita com parentes a aldeia Bakairi de Pakuera, onde havia um posto do antigo Serviço de Proteção aos Índios (spi). Lá, Nahũ morou durante parte de sua infância e aprendeu a falar português. 

Este conhecimento se revelaria extremamente valioso nos anos 40, após o encontro inesperado da Expedição Roncador-Xingu com os kalapalo — vizinhos dos kuikuro, também falantes de uma língua karib. Após um convite dos próprios kalapalo, que o pagaram para atuar como tradutor, e da intervenção de não indígenas como Nilo Veloso e Orlando Villas Bôas, Nahũ se tornaria um dos principais mediadores entre os alto-xinguanos e os recém-chegados caraíbas. Como Yamaluí resgata em seu livro, seu avô seria a primeira pessoa a ser considerada, por desígnio dos brancos, “chefe do Xingu”.

Perspectiva única


A biografia de Nahũ se entrelaça intimamente com a história da luta pela criação e demarcação do Parque Indígena do Xingu. A obra recupera momentos cruciais das relações entre indígenas e não indígenas naquela região, retratando relações do biografado com figuras históricas proeminentes, de marechal Rondon a Sagagi Kalapalo, de Orlando Villas Bôas a Aritana Yawalapíti, de Fernando Collor a Janumakakumã Kamayurá. O livro oferece uma perspectiva indígena única sobre esses encontros e as dinâmicas de poder e negociação em torno deles — e, o que é fundamental, recoloca a política tradicional xinguana no centro da narrativa histórica.

Consequentemente, a biografia de Nahũ também nos oferece uma visão bastante detalhada, quase íntima, da economia alto-xinguana do prestígio, tema tão caro à literatura antropológica da região. Ao longo da vida, Nahũ se tornou mestre de um vasto repertório de saberes especializados, como cantos, rezas e narrativas. Grande parte desse conhecimento foi adquirido por meio do costume xinguano de pagamento pelo aprendizado, um dado cultural importante que o livro evidencia. 

As habilidades linguísticas e diplomáticas de Nahũ, somadas a seu conhecimento ritual, lhe permitiram ascender no sistema xinguano de prestígio, no qual, por nascimento, ele não possuía um status elevado. Sua posição singular, contudo, não veio sem tensões, acusações, medos — temas explorados no livro de maneira ao mesmo tempo direta e delicada. A despeito de uma trajetória social controversa, marcada por prestígio e desconfiança, ele próprio foi, após sua morte, homenageado em um grande quarup, rito mortuário reservado aos chefes hereditários e seus parentes — um reconhecimento póstumo explicitamente indesejado por Nahũ.

Yamaluí nos conta que sua motivação para escrever o livro foi profundamente pessoal e política: desfazer o apagamento de Nahũ das versões oficiais da história xinguana. A pesquisa foi um processo longo, iniciado em 2013 e concluído apenas em 2023. O autor enfrentou dificuldades financeiras, custeando sozinho uma viagem de pesquisa à aldeia Bakairi de Pakuera. Lá, entrevistou pessoas como a centenária Laurinda Bakairi, que conheceu seu avô na infância, buscou documentos e imagens em cidades, e reuniu familiares em torno da memória do avô.

Edição bilingue

O processo de escrita e edição envolveu o apoio de linguistas, antropólogos e outros colaboradores, incluindo os pesquisadores Bruna Franchetto e Carlos Fausto, que trabalham há décadas junto aos kuikuro, e os professores indígenas Mutuá Mehinaku (irmão do autor) e Trukuma Rui Kuikuro. A escolha por uma edição bilingue kuikuro/português, com traduções feitas em diálogo próximo com os colaboradores de Yamaluí, se mostra fundamental, permitindo manter a língua kuikuro e sua densidade conceitual em primeiro plano. Essa escolha também permite que o livro seja amplamente lido por falantes das línguas karib do Alto Xingu e contribua para a preservação das memórias nele registradas, o que amplia ainda mais seu impacto e relevância.

‘Dono das palavras’ é um testemunho cultural, que recupera a agência indígena na construção do Brasil

O prefácio de Carlos Fausto e as notas de sua autoria ao longo do livro oferecem informações etnográficas e históricas que enriquecem a leitura, sobretudo para quem não tem familiaridade com o universo xinguano. Notas sobre a função do modificador kugü (“hiper”) em kuikuro, a complexidade do termo kuge (“gente”) em oposição a ngikogo (“índio bravo” ou não xinguano violento) e a importância dos rituais permitem uma imersão mais profunda no mundo kuikuro e alto-xinguano e, assim, uma melhor compreensão dos eventos narrados na obra.

Dono das palavras é, portanto, muito mais do que uma biografia; é um testemunho histórico e cultural, um caso concreto de “luta com papel” que recupera e reafirma a agência indígena na construção da história do Xingu e do Brasil, e uma contribuição fundamental para a literatura indígena contemporânea. Ao contar a história de Nahũ, Yamaluí não apenas homenageia seu avô, mas também oferece ao leitor não indígena a oportunidade de ver eventos da história do Brasil por uma perspectiva diferente e necessária. É um convite à escuta e ao reconhecimento das muitas vozes de “donos das palavras” que, por tanto tempo, foram silenciadas pela história oficial. A força da oralidade, a riqueza cultural kuikuro e a centralidade da figura do tradutor/mediador são trazidas à tona em uma obra de grande valor literário, histórico e antropológico. Com o livro, Yamaluí agora ocupa uma posição semelhante à do avô, e se torna ele mesmo um dono das palavras, em mais um capítulo da história das relações dos alto-xinguanos com os caraíbas, mas cuja tinta agora corre em suas próprias letras.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Antonio Guerreiro

Professor de antropologia na Unicamp, é autor de Ancestrais e suas sombras (Editora da Unicamp)