Literatura,

Sem fluxo de consciência

Prosa econômica de autora norte-americana é herdeira de nomes como Samuel Beckett, Franz Kafka e Robert Walser

14nov2018 | Edição #8 dez.17-fev.18

Quando a Companhia das Letras introduziu-a aos leitores brasileiros, em 2013, com os contos de Tipos de perturbação, Lydia Davis só dispunha da fama de ter sido a primeira mulher do escritor Paul Auster (com quem teve um filho e uma editora alternativa) e construído uma carreira de tradutora irrepreensível, notadamente de Proust e Flaubert. No ano passado, a José Olympio traduziu O fim das histórias, primeiro romance dela, e agora temos uma nova coletânea de microficções, o ecossistema literário em que ela se sente mais à vontade.

Quando a li, três anos atrás, na bela edição da Farrar, Straus e Giroux, intriguei-me com o título (Can’t and Won’t) e me pus a especular sobre a tradução mais adequada que aqui lhe poderiam dar. Branca Vianna, que tão bem já traduzira Tipos de perturbação, acertou na mosca: Nem vem é um achado. Davis explica o seu “can’t e won’t” no 28º relato da coletânea: “Há pouco tempo deixei de ganhar um prêmio literário porque, segundo eles, sou ‘preguiçosa’. O que queriam dizer com ‘preguiçosa’ é que sou muito econômica: por exemplo, nunca escrevo por inteiro a expressão ‘não vem que não tem’, abreviando, em vez disso, para ‘nem vem’”.

São 122 relatos, acomodados em quase trezentos páginas, imaginados como sonhos e inspirados por reminiscências autobiográficas, ocorrências extraídas das cartas de Flaubert a Louise Colet, situações banais na rua, em trens e aviões que de repente tornam-se absurdas, aflitivas e mesmo tragicômicas, com muitos bichos (cães, gatos, uma rã, um galo e um pasto cheio de vacas) e até salames roubados e ervilhas congeladas, quando não objetos domésticos que parecem ter o dom da fala. Imagine uma lavadora que ora diz “Paquistão, Paquistão”, ora fala “pipoca, pipoca, pipoca”.

Seus múltiplos e alternados tamanhos — cinco páginas, uma página, um parágrafo, duas ou uma linha apenas; “As focas”, a mais extensa, tem 34 páginas, quase uma novela para os padrões da autora — dão uma dinâmica especial à leitura. Em literatura, tamanho também não é documento. Em quantas páginas o Velho Testamento conta a história de Adão e Eva? Meia página, se não me falha a memória. Foi há muito tempo, diria Davis, em mais uma de suas observações bem-humoradas, que vez por outra tangenciam o sarcasmo.

A morte sempre ronda as narrativas de Davis. Um exemplo é a história de dois agentes funerários, testemunhada por Barthes

Davis pratica uma prosa idiossincrática, austera e elegante, elíptica e imperturbável, sem regras fixas e de difícil categorização; às vezes, lembra uma crônica que decidiu ser outra coisa menos banal, um poema trans, um aforismo esticado, um solilóquio ruminativo, um jeux d’esprit metafísico (apud James Wood, crítico da revista The New Yorker, seu maior entusiasta) ou algo próximo a um origami filosófico. Sem método nem descrições ambientais ou paisagísticas. A maior parte de suas histórias se processa na cabeça de quem as relata, mas sem “fluxo de consciência”; seus mestres não são Joyce nem Virginia Woolf, mas Samuel Beckett (que começou a ler aos treze anos), Kafka, Raymond Carver, Robert Walser e esquisitões afins.

Tuíte

Algumas de suas “histórias”, de tão enxutas e, por vezes, lacônicas, caberiam num tuíte: “Agora que estou aqui há um tempinho, posso dizer com certeza que nunca estive aqui antes”. (81 caracteres com espaço, 107 no original em inglês.)

“Este romance chato, difícil, que eu trouxe na viagem — sigo tentando acabá-lo. Já voltei a ele tantas vezes, sempre com apreensão, e sempre confirmando que continua ruim, tanto que ele agora está se tornando um velho amigo. Meu velho amigo o mau romance.” (251 caracteres.)

E, no entanto, Davis não tem conta pessoal no Twitter. A que leva seu nome, feita por outra(s) pessoa(s), é só de citações.

Em vez de descrever, Davis prefere classificar. As aporrinhações do trivial cotidiano (dor no dedão, gente tossindo durante o concerto, filas compridas, banheiro ocupado, a verruga que voltou a crescer, punho de suéter úmido, Band-Aid molhado), os assuntos que elimina quando precisa ler o mais rápido possível os números atrasados do Times Literary Supplement, os tipos de peixe que podemos e não devemos pedir num restaurante, devidamente anotados de um guia da Sociedade Audubon.

Nem sempre a autora acerta. Há um bocado de joio no seu trigal. A maioria dos sonhos, por exemplo, é enfadonha. Outro caveat: “Coitado do cachorro deles”. Não dá pra ler; não porque seja ruim, ao contrário, é um primor, mas por ser de uma tristeza insuportável.

A morte está sempre rondando as narrativas de Davis. Ocasionalmente com uma atenuante dose de ironia. Um bom exemplo é a história dos dois agentes funerários que se encontraram por acaso no interior da França: “Um agente funerário que está levando um morto para o norte numa rodovia da França decide parar num restaurante de beira de estrada para um almoço rápido. Lá, encontra outro agente seu conhecido, que também parara para almoçar rapidamente e que está levando um morto para o sul. Eles decidem sentar-se à mesma mesa e almoçar juntos. Esse encontro entre profissionais é testemunhado por Roland Barthes. É sua mãe morta que está sendo levada para o sul. Ele assiste a tudo de outra mesa, onde está com a mãe. A mãe, é claro, está lá fora, no carro fúnebre”.

Tem o dobro de um tuíte e me lembrou do cadáver de Tchekhov misturado ao gelo das ostras de um trem a caminho de Moscou, ocorrência ainda à espera de que Lydia Davis a transforme num microconto igualmente pitoresco e macabro.

Quem escreveu esse texto

Sérgio Augusto

Jornalista, reuniu seus textos sobre cinema em O colecionador de sombras (e-galáxia).

Matéria publicada na edição impressa #8 dez.17-fev.18 em junho de 2018.