Alimentação,

Somos o que comemos

Em meio ao lançamento do seu novo livro, o chef Yotam Ottolenghi sugere estratégias culinárias para o isolamento

20nov2020 | Edição #40 dez.2020

Como o restante do mundo, Yotam Ottolenghi está isolado em casa. A pandemia da Covid-19 fez com que esse israelense-britânico de 51 anos se aquartelasse em Londres e, entre outras coisas, evitasse comer na rua. Ele precisou, assim, acostumar-se a cozinhar todas as refeições do dia com o marido e os filhos.

Com uma singela vantagem, é claro: Ottolenghi é um dos chefs mais famosos do mundo. Seus livros de receita — como Simples, que a Companhia de Mesa publica agora no Brasil—são uma cara referência, em especial, para quem busca inspiração de receitas complexas que sejam, ao mesmo tempo, factíveis. 

Ao contrário de tantos chefs de quarentena, que compartilharam seu aprendizado e seus desastres culinários nas redes sociais, Ottolenghi sabia o que estava fazendo. Ainda assim, não foi fácil. “Normalmente eu passo o dia na rua, no restaurante, testando pratos e receitas. Não estava acostumado com estar em casa o tempo todo, cozinhando com a minha família”, ele diz durante uma conversa por vídeo com a Quatro Cinco Um. “Comíamos juntos talvez uma, duas das refeições do dia. Todas as três, não.”

Se é que há lados positivos nesta pandemia, no caso de Ottolenghi um deles foi poder se reconectar com a cozinha do dia a dia. “Gostei muito de usar a comida para pontuar a passagem do dia, para dividir as horas”, conta. Cozinhou muito com o marido e os filhos. Aproveitou a predileção dos rebentos por massas e legumes para improvisar pratos desses em que você coloca tudo dentro da panela ou no forno e espera ficar pronto. Como algumas das receitas de Simples.

Famoso por pratos vibrantes salpicados com sementes de romã, fotogênicos e de umedecer a boca, ele também aprendeu a vasculhar a cozinha em busca do estivesse à mão. “Tenho ouvido de muitas pessoas que estão tentando não desperdiçar, usar tudo. Em vez de jogar fora a última fatia do pão, ou as migalhas, fizemos um monte de receitas à base de pão e ovo, como rabanada e pudim de pão. São pratos que exigem quee você seja frugal e cuidadoso com o modo como usa os ingredientes”, ele diz, diante da câmera, enquanto mordisca uma caneta.

Um dos pontos fortes de Simples, como o nome diz, são as receitas fáceis. O livro tem inclusive uma categoria de pratos que levam menos de trinta minutos para ficarem prontos. Talvez isso fosse mais necessário quando o livro saiu em inglês, em 2018. Agora, isoladas em casa, as pessoas querem justamente pratos que demoram. Que enchem o dia. “Quem não precisa alimentar muita gente começou a buscar projetos como cerveja, pão e pasta”, ele diz, “coisas que levam tempo demais, se você tem uma vida muito corrida”. Para quem quer investir em tarefas de médio e longo prazo, ele sugere uma das lições de seu livro mais recente, Ottolenghi Flavor (Sabor Ottolenghi), lançado neste ano.

A lição é criar o que ele chama de “bombas de sabor”. Por exemplo, temperos que você prepara com antecedência e deixa na geladeira ou na despensa para quando precisar—como vegetais em conserva, pimentas e chutneys. Coisas que, como diz o clichê, são explosões de sabor. “Eu adoro esse tipo de cozinha, de deixar preparado um mês antes e usar quando quiser. Você pode fazer cuscuz e lentilha, ou talvez assar um frango, e depois colocar esses sabores em cima.”

Sem paladar

No quesito sabor, Ottolenghi teve um susto no início do ano. Contraiu Covid-19 em março, nas primeiras levas da pandemia. Perdeu o paladar e o olfato por alguns dias. Só não se preocupou tanto porque, como os cientistas ainda não falavam na perda de sentidos como uma sequela da doença, ele não soube a tempo que corria o risco de danificar um dos seus instrumentos de trabalho — e que não pudesse mais provar dos sabores com que se habitou a trabalhar. “Não prestei tanta atenção.”

Alguns dos sabores com que estava acostumado, é claro, são mais difíceis de recriar durante uma pandemia, evitando as ruas. Uma das marcas da cozinha de Ottolenghi são justamente ingredientes incomuns, ou exóticos para alguns, como alho negro, sumac, água de rosas e melaço de romã — não são, digamos, os itens que você encontra no mercadinho da esquina, com pressa, escondido atrás da máscara. Mas o chef não acha que esse seja um grande problema.

“Eu vivo dizendo isso para as pessoas, e talvez elas não acreditem. Esses ingredientes são ótimos, mas eles não são essenciais. Minhas receitas são famosas por ter muitos itens, e você pode tirar um ou dois deles sem estragar o prato. Talvez perca algumas camadas, mas não destrói o que você estava fazendo”, diz. “Não quero que as pessoas se estressem tanto com essas coisas. Não precisa usar exatamente a pimenta que está na receita. Ponha outra.”

Cozinhar, Ottolenghi insiste durante toda a entrevista, tem que ser divertido. E mesmo as receitas que parecem mais complexas—como o purê de feijão com muhammara que aparece em Simples — podem ser feitas sem tanta ansiedade. A muhammara, ele diz, assusta apenas no nome. É simplesmente uma pasta levantina de pimentões e nozes. “Nem toda receita pede que você use ingredientes exóticos.”

Ottolenghi não tinha todos esses pratos, com o perdão do trocadilho, na ponta da língua. O chef precisou, na verdade, reler seus próprios livros de receita para encontrar ideias que recheassem—sim, outro trocadilho—seus dias na cozinha de casa. “Mesmo quando você escreve receitas de maneira profissional, acaba ficando preso aos mesmos pratos”, diz. Uma das receitas que ele revisitou, em sua quarentena, foi a de um bolinho de couve-flor. Era um dos favoritos em seu livro de estreia em 2008, Ottolenghi, escrito em parceria com o palestino Sami Tamimi. “Você coloca cúrcuma, canela, couve-flor… É uma receita que remete à infância do Sami em Jerusalém Oriental. Uma coisa tão simples. Eu não tinha feito esse prato fazia muito tempo. Meus filhos adoraram. Livros de receita—e também as redes sociais—são úteis para isso, para inspirar”, Ottolenghi explica.

O retorno a uma receita de 2008 tem bastante simbolismo. Foi com aquele livro que o chef ganhou o tipo de fama em que a simples menção de seu nome evoca pratos como seu limão siciliano em conserva, um clássico de Jerusalém (2012).

Identidade

Seu nome ficou associado, também, a sua origem médio-oriental. Ottolenghi nasceu na porção ocidental de Jerusalém. Tem origem judaica, alemã e italiana—“Ottolenghi” é uma versão italiana da cidade Ettlingen, na Alemanha. Apesar de ter se mudado para a Holanda nos anos 1990 e depois para o Reino Unido, onde fez carreira, ele diz não se importar com ser visto como um chef israelense. “Foi minha primeira cozinha. Mas as pessoas sabem, também, que eu adotei técnicas e ingredientes de outras culturas, e meus livros estão repletos disso.”

Mais do que o Oriente Médio ou Israel, em particular, Ottolenghi define sua identidade culinária de acordo com o que ele chama de “intensidade”. Ele explica o termo: “É algo sobre o sol. Ingredientes cítricos, limões e limões sicilianos. Pimenta, alho, tomate. São os blocos com que monto minha cozinha. Não importa tanto de onde vêm".

Sua origem israelense, porém, é de certa maneira inescapável dada à intensidade política da região. Ottolenghi é criticado, por exemplo, por sua suposta domesticação de ingredientes e pratos típicos palestinos, apresentados como israelenses ao restante do mundo e, assim, tornados mais palatáveis. É difícil evitar, também, o tema do colonialismo israelense. Israel ocupa desde 1967 o território da Cisjordânia, impedindo a livre circulação de palestinos—e impossibilitando, inclusive, que palestinos cultivem suas próprias plantações. Um muro por vezes separa famílias das terras onde tinham plantado as suas oliveiras.

Ottolenghi está a par da conversa, e costuma ser questionado sobre isso. Um dos temas recorrentes é o debate simbólico em torno do falafel. Em muitas partes do mundo, esse bolinho é tido como um prato israelense. Isso enfurece alguns árabes—que, afinal, fritam falafel tradicionalmente há décadas e o têm como seu. “É importante reconhecermos que, apesar de palestinos fazerem coisas como falafel e mutabbal (pasta de beringela), os israelenses acabam levando a fama. Também são pratos palestinos. Como eles são a parte mais fraca do conflito, não tem o poder de se expressar e não são levados em conta”, afirma.

Por outro lado, Ottolenghi também insiste em que esse debate parece alheio aos tempos em que vivemos. “Queremos resolver injustiças históricas, e há muita angústia”, afirma. “Mas eu não acho que as pessoas possam ter a posse de tradições culinárias. Tento ser sensível, mas também não sou o tipo de pessoa que diz que um homem branco não pode fazer comida latina”, ele explica. Parte de sua obra, vale lembrar, é assinada com o chef palestino Tamimi.

A conversa é particularmente complicada porque comida e hábitos alimentares são, em geral, fundamentais na construção de identidades. Israel de fato utiliza pratos como falafel e hummus para se projetar no exterior, uma espécie de “soft power”. O ditado em Israel, ademais, é de que os israelenses são como o figo da índia—espinhentos por fora, docinhos por dentro. Palestinos, por sua vez, veem outra coisa nesse mesmo fruto, que nasce em um tipo de cacto. Eles dizem que são resilientes como o figo da índia, impossíveis de extirpar. 

“A comida é um dos símbolos imediatos da identidade”, Ottolenghi diz. “Nem todo o mundo compartilha as mesmas canções nacionais ou é sensível a ideologias. Mas todo o mundo come. É uma coisa em comum a todos. Somos o que comemos.”

O problema de dar muita ênfase a essa conversa, diz, é que se perde de vista o fato de que—em sua interpretação—a comida tem mais a ver com outra coisa: felicidade. “A política quase drena a alegria que a comida traz. Eu deveria poder saborear um falafel independentemente de algo horrível ocorrer em seu nome. Acabo me incomodando com esse tipo de discussões, que parecem esotéricas.”

Não que ele se remova de completo do debate público. Dias antes da entrevista, Ottolenghi enviou uma carta ao Parlamento britânico pedindo que o governo leve em conta a qualidade dos produtos agrícolas na hora de firmar tratados de comércio, após a saída do Reino Unido da União Europeia, o famigerado “Brexit”. “Falo da comida como fonte de alegria, mas precisamos entender também o que está acontecendo. Estou apavorado que a qualidade dos ingredientes seja erodida, por exemplo, por tratados assinados com partes do mundo em que o nível do trato dos animais não é tão alto”, diz. Está pensando no Brasil e na resistência europeia a importar carne, com o argumento dos padrões sanitários? Diz que não. Que é uma preocupação mais geral—e que não acompanha a questão da carne brasileira tão de perto.

Brigadeiro

De brasileiro, o que aparece na conversa com Ottolenghi é o brigadeiro. Um tema, aliás, que para tantos brasileiros pode ser controverso. O docinho que traz tanto orgulho ao país costuma, afinal, ser mal recebido no exterior. Em algumas culturas, o brigadeiro é tido como doce demais.

Ottolenghi provou o quitute recentemente. Ixta Belfrage, uma das coautoras do livro Ottolenghi Flavor, é filha de uma brasileira e apresentou o brigadeiro ao famoso chef. “É bastante doce”, ele confessa. “Mas eu disse para ela: as crianças vão adorar.” Principalmente pela parte lúdica do processo de enrolar as bolinhas, cobrir de granulado, colocar em forminhas. Seus filhos gostaram. “Quando você cozinha uma coisa de outra cultura, precisa seguir a onda. Não sou um esnobe”, ele afirma.

Provar coisas novas, aliás, é uma das mensagens do livro que ele lança agora no Brasil. “É fácil desistir de tentar fazer algo que você nunca fez, dizer que é muito complicado, que não tem familiaridade com os ingredientes. Mas é incrível o quanto você pode aprender ao cozinhar algo novo, especialmente com vegetais”, afirma. É com vegetais que vemos como as técnicas da cozinha transformam os ingredientes, explica. É o que acontece, por exemplo, ao grelhar uma abobrinha, modificando sua textura e sabor. “As pessoas nem sabem que essa é uma opção. Precisamos desse tipo de criatividade, dessa aventura”, diz.

A conversa volta a um dos eixos centrais da cozinha de Ottolenghi—a conexão entre comida e felicidade. O fato de que a entrevista ocorre a distância, por vídeo-conferência, significa que a pandemia está sempre presente também no papo. Antes de desconectar, Ottolenghi insiste na mensagem, quiçá um bálsamo para esses duros dias de isolamento social: “Comida é uma fonte de alegria infinita. Algo com que você pode, especialmente agora, trazer o mundo para perto de si”.

Matéria publicada na edição impressa #40 dez.2020 em novembro de 2020.