Onde Queremos Viver,
Sorte moral
Isso não existe; existe apenas o pânico de mentir a si mesmo versus o pânico de morrer sozinho numa viela
08jun2023 | Edição #71Numa breve fase da infância, tudo girava em torno das vidas infinitas. Era uma recompensa escondida num certo nível do videojogo, através de um portal que dava para outro mundo, com outra banda sonora. Acedia-se através de uma combinação de movimentos da personagem, uma certa sequência de botões. Viria a perceber que todos (menos eu) sabiam a sequência, descrita numa revista espanhola que todos (menos eu) sabiam qual era, e onde a comprar. Fiquei furioso e vexado com o cinismo implícito a respeito do meu Santo Graal. Era afinal um objecto de comércio, um lugar-comum. Não muito depois fiz uma descoberta filosófica que me lançou na puberdade. A de que o próprio videojogo implicava o conceito de vidas infinitas. A possibilidade de se começar mil vezes de novo, sem consequências.
Jogava-os por isso com a arrogância da juventude. Se o jogo não era perfeito, matava-me, desperdiçava vidas atrás de vidas para não perder tempo com vidas desperdiçadas, começava de novo quantas vezes fossem precisas para conseguir fazer o jogo perfeito, o máximo final score.
Transtorno obsessivo
Não sei se queria com isso emendar a separação dos meus pais; não sei se queria gravar um monumento à minha própria perfeição. Sei que não queria perder tempo com pontuações medianas. Matava-me ao menor revés, recomeçava. Talvez tenha começado também aí o moderado transtorno obsessivo-compulsivo autodiagnosticado que me dificulta, por exemplo, escrever. O processador de texto, bem vistas as coisas, é uma espécie de videojogo. Se a frase, o tom, o parágrafo, a simples mancha etc. — se coisas assim não estão bem (escusam de perguntar o que significa “estar bem”), se ou enquanto não estão bem, não sei avançar. Recomeço, recomeço, recomeço.
Penso então na vida de Gauguin, no êxito que justifica a coragem (a cobardia?) de deixar tudo em nome de uma ideia
Neste desperdício de inícios, disperso frases a meio pela superfície da página, até desfigurar a premissa, até a tornar irreconhecível. Lembra a mobília desarrumada pela casa naqueles tédios de fim-de-semana em que decidimos mudar tudo de sítio e quando se dá por isso está inabitável e estamos demasiado exaustos para voltar a pôr tudo como estava, e vem uma certa tristeza. A casa fica pior, a prosa desfigura-se. Então, abro outro documento; recomeço; o ciclo repete-se penosa, destroçadamente: de facto, está acontecer neste preciso momento diante dos meus olhos enquanto escrevo e vocês não vão ver, porque só conta o final score, não o sofrimento até ele. Em face da mudança de cidade, da mudança de país, da mudança de vida, dou comigo a pensar de novo no conceito de final score, no conceito de vidas infinitas; e tento afastá-los da consciência escrevendo a seu respeito.
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Penso então na vida de Gauguin, no êxito que justifica a coragem (a cobardia?) de deixar tudo em nome de uma ideia: abandonar a família para se pintar belamente no Tahiti. Sorte moral não existe. Existe apenas o pânico de mentir a si mesmo versus o pânico de morrer sozinho numa viela. Sorte moral é o nome que os outros dão a escaparmos a esse fim, sem nos mentirmos. Nomes para isso, há vários: privilégio, frieza, milagre; e nenhum diz tudo. O que não há são atalhos — o que não há são revistas espanholas.
Matéria publicada na edição impressa #71 em julho de 2023.
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