
Onde Queremos Viver,
Os emigrantes
Se atrás das paredes estiver o nosso nome verdadeiro, como sobreviver?
01fev2025 | Edição #90 fevEm Os emigrantes, Dr. Selwin confessa as suas saudades de casa a W. G. Sebald. Emigrante lituano em Inglaterra, mudara de nome ainda jovem. Nem sequer à mulher inglesa com quem casou havia de contar quem realmente era e de onde vinha, senão muito tarde. A certo ponto, já velho, a verdade escondida sufocou-o. Parece que podemos esconder-nos atrás das paredes apenas até ao dia em que elas desmoronam com a pressão daquilo que aí escondemos. Teria Selwin vendido a alma, ao deixar de ser Hersch e passar a ser Henry? Ou tê-la-ia vendido nos anos em que escondeu da mulher a sua transfiguração num pacato médico inglês? Era ele um emigrante a tentar levar a cabo uma vida nova — ou um impostor?
Escondera da mulher por décadas a verdade que agora partilhava com um estranho, Sebald, numa visita casual. Escondera dela o amigo que perdera nos Alpes, soterrado no gelo, ainda que, ao
saber da sua morte, notícia que lhe chegara no quartel onde estava destacado, durante a Primeira Guerra, em 1914, ainda que então tivesse sentido que o tinham enterrado a ele, Selwin, no gelo.
Dr. Selwin era um emigrante a tentar levar a cabo uma vida nova ou um impostor?
A chave da confissão parecia ser a cerimónia entre ambos, Sebald e Selwin, porque representava a suspensão do julgamento. A história de Selwin e o seu desenlace trágico, culminando no suicídio, são narrados com uma hospitalidade isenta de sentimentalismo. Apenas tarde demais, no comboio que ia de Zurique a Lausanne, Sebald deu com o relato da aparição dos restos mortais desse amigo de Selwin, 72 anos depois “libertados pelo glaciar” que o engolira.
“Estão sempre a regressar até nós, os mortos.” Mas este facto põe-nos diante da sua chegada contínua, como anfitriões perenes. A cada momento, somos quem os vai esperar ao porto, vindos num navio onde vem o tesouro a que confiaremos a nossa vida. Por isso a sua morte, abrindo para nós a espera em aberto por uma chegada que se arrasta no tempo, coloca-nos, diante dos mortos, no papel de constantes responsáveis por dar-lhes boas-vindas. Contam conosco como cicerones amné-
sicos, que repetimos vezes sem conta as mesmas frases. Se os mortos nunca param de regressar, se nunca param de morrer, nós, vivos, também não paramos nunca de os ir receber ao cais.
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Se atrás das paredes estiver o nosso nome verdadeiro e o escondermos mesmo daqueles que amamos, como sobreviver? Por um lado, aquilo que está atrás é uma máquina silenciosa que opera num plano anterior, ainda que concomitante, ao plano da vida, o avesso das nossas escolhas e decisões. Ao mesmo tempo, “atrás das paredes” é não apenas o que reside nesse plano paralelo, mas a coisa verdadeira sobre o que somos, que podemos ou não esconder dos outros e, sobretudo, de nós. Dr. Selwin mudara de nome, assimilara a cultura inglesa, talvez algures, como aventa, tenha esquecido quem era. Em Os emigrantes, não lhe é dado consolo para a autotraição, estreia a espingarda na própria cabeça, matar-se é porventura a maior traição que faz a si mesmo.
Mas talvez o consolo venha do encontro fortuito com um estranho a quem contar o seu tormento. Se primeiro Sebald se torna inquilino do homem a quem presta homenagem, no final recebe-o em casa como visita. Em ambos os casos, o importante é que, do outro lado da porta à qual se bate, esteja alguém vivo que a abra.
Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Os emigrantes”
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FEVEREIRO, 2025