Detalhe de Bryopsis plumosa, de Anna Atkins (The MET/Reprodução)

Onde Queremos Viver,

Etcétera

As minhas melhores imagens não existem até haver o conjunto que lhes dá sentido

01fev2025 | Edição #90 fev

As minhas melhores imagens, não as mostro. Guardo-as para livros e exposições, que não é certo virem a acontecer. Tendência que um amigo descreveu uma vez a partir de outra característica minha, a seu ver um pouco irritante. A de, ao mostrar certas imagens, dizer que há outras melhores, que ainda não estou preparado para mostrar. “Se elas existem mesmo”, acrescentou cruamente, “não tens o direito de fazer isso a ti próprio.”

Um cínico pensará que não existem e, de certa maneira, está certo. As minhas melhores imagens não existem até haver o conjunto que lhes dá sentido. Conjunto que vive em mim sob a forma de horizonte ou pano de fundo privado, que não quero, não posso estragar. Todo fotógrafo conhece a cruel verdade do colocar sobre a mesa imagens suas. O mero gesto de levar a fotografia à mesa diz-nos de forma clara se a imagem merece tocar na mesa, diante de terceiros. A luz do dia, que nos deu as imagens, é seu mais implacável jurado.

Todo fotógrafo conhece a cruel verdade do colocar sobre a mesa obras suas diante de terceiros

Calha bem que a fotografia, feita como deve ser, não seja fácil nem barata. A gente esconde-se atrás da dificuldade económica e não aceita esmolas. Isso dá-nos o tempo necessário, mas nunca o suficiente, para percebermos quem somos, o que estamos a fazer. “Não senhor”, protesto, “as imagens têm de ser mostradas exactamente como têm de ser mostradas, etcétera”. É o tipo de coisa que digo a mim mesmo e te explico repetidamente, ano após ano, enquanto me olhas apreensiva, advertindo-me para os riscos desse tolo idealismo: “Olha que não vais para novo, Humberto, não podes esperar para sempre, etcétera”. E todas as conversas vão dar aqui, ao rodeio, ao cerne. A esse grande etcétera que é o horizonte privado. 

O great creator of being”, declamo entredentes, “grant us one more hour to perform our art and perfect our lives”. O coração ri secamente. “O desperdício, mesmo numa vida ditosa”, escreveu Empson, “o isolamento, até numa vida rica no foro privado, não pesa senão profundamente […] e haja o que houver de valia deve aceitá-lo porque não se pode prostituir; a sua força é estar preparado para o desperdício, se a sua oportunidade não chegar”. À medida que envelheço vou-me dando conta da arrogância desta ideia. Foi mais ou menos isto que me quis transmitir o tal amigo ao falar-me da minha “tendência um pouco irritante”.

O grande fotógrafo português António Júlio Duarte dizia uma vez que vivemos entre o impulso de mostrar tudo e o de apagar tudo. Tensão que alguns de nós, seus alunos, reconheceram com sorrisos escusos. “Quando vejo as imagens”, acrescentou, “começa por me parecer que são geniais; a seguir, vem a fase em que me parecem todas elas horríveis: quero apagar tudo; e só depois vejo que não são assim tão más”, etcétera.

O impulso de mostrar tudo não é porém o mesmo em toda a gente, menos ainda hoje. Há os que mostram tudo na ausência de impulsos contrários, ansiosos ou alegres por as suas vidas serem um símbolo da época. E há aqueles em que tal pulsão advém do medo de ficar para trás. Para trás na sua versão subjectiva da grande Corrida Maluca, a esfera pública. É quando se corre o risco de nos criarmos como os estúdios Hanna-Barbera criam personagens. Exagerando traços distintivos; aspirando à condição de tipo. Época de saldos, a meia idade. Etcétera, etcétera, etcétera.

Mas a pessoa, amigos, não é um desenho animado. 

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025. Com o título “Etcétera”

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