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Onde Queremos Viver,

Ninja

Passados quase trinta anos, tornou-se um paradoxo. Endureceu e amoleceu

10ago2023 | Edição #73

Reformados, bêbados, imigrantes, mães solteiras contraditoriamente tatuadas, avós mal encaradas, netos de dentes de leite e orelha furada, pequenos neymares, petizes mascarados de patifes. Na fila para o tabaco, que se confunde com a fila para as raspadinhas, um adolescente de cinquenta anos. A seu lado, uma mulher mais velha. Reconheço-os. Sim, talvez seja, talvez, não, é mesmo, é a mãe dele, e é ele mesmo: o Ninja! Nunca mais me lembrei do Ninja. Fico a olhá-los a alguns metros com uma golfada de memórias quase emocionante.

A mãe do Ninja era cabeleireira. Rapado por baixo e longo em cima, preso num coque samurai, era ela a responsável pelo cabelo do filho na adolescência. Parecia um potro selvagem lançando o caos e o terror nos corredores do liceu. Do pai, camionista de longo curso, guardo um difuso fantasma de John Kreese. De misteriosos pontos da Europa, trazia-lhes duas coisas. Videojogos e nódoas negras. Como chegariam às lojas da nossa pequena cidade periférica apenas meses depois, todos queríamos ser os primeiros a jogar esses jogos. Era desta forma que frequentávamos a casa daquele que nos causava pesadelos. As marcas, justificava-se a nós, eram do Kickboxing, que praticava com devoção, dentro e fora do ringue. O que não explicava as marcas na mãe. Nós fingíamos acreditar.

Morde os lábios, suja os dedos, sorri de leve, olha em redor e, então, volta ao início da fila 

Tinha um irmão mais velho, quase idêntico. Alto, emaciado, aristocrático, lembrava um cavalo faminto num descampado, cujo trajecto se esfuma nos anos 90 em salões de bilhar. Não tinha nome. Todos o conheciam simplesmente como o irmão do Ninja. Quando não estava a bater em alguém, ou a drogar-se atrás dos pavilhões, o Ninja jogava mega drive. Graças a esta disciplina era olímpico em todas as categorias ao mesmo tempo. Porrada, videojogos, mdma. No décimo ano, sufocou com uma corrente uma menina da turma, que o irritava. Quase a fez perder os sentidos. Assisti a tudo e não tive (ninguém teve) coragem de a defender. O Ninja ria-se às gargalhadas enquanto a asfixiava. Até que a sua expressão se alterou, suspensa de pasmo; e, perdendo o interesse, com uma feição opaca quase triste, soltou a presa. Deixou de aparecer na escola por volta deste incidente.

Vi-o uma ou duas vezes depois disso, consumido pelo consumo de ecstasy e cocaína. Era já uma sombra tremulante de si mesmo, aos dezassete. Sorrio por ver que se endireitou. Olhem para ele agora. De corte militar e envergadura adulta, tem a vulgaridade limpinha de porteiro de boate de província ou de gigolô que vive às custas da mãe. Passados quase trinta anos, tornou-se um paradoxo. Endureceu e amoleceu. (Não é isso que nos acontece a todos?) São finalmente atendidos. A mãe paga a despesa: o tabaco, a taluda, o totoloto, o totobola, a raspadinha. Segue sozinha para o interior do supermercado. O Ninja encosta-se ao balcão raspando com as chaves prémios imaginários. Morde os lábios, suja os dedos, sorri de leve, olha em redor, e, então, volta ao início da fila sem me reconhecer, sem se reconhecer.

Toco-lhe no ombro, olha-me risonho de soslaio, não me reconhece logo, então, acende-se uma lâmpada interna, vejo que se lembra de mim, e assim que nos cumprimentamos com palavras afáveis, toma conta dos dois um súbito, incerto esfriamento, e somos novamente dois estranhos de meia-idade a atrapalhar o cortejo do presente.

Quem escreveu esse texto

Humberto Brito

É escritor, ensaísta e fotógrafo

Matéria publicada na edição impressa #73 em setembro de 2023.