Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O ataque à liberdade acadêmica no Brasil

Sem uma cultura humanista, crítica e questionadora, abre-se o caminho para impor visões de mundo e disseminar a intolerância

01jun2020

Fevereiro de 2018: Ministério da Educação ameaça professor que ofereceu curso intitulado “O golpe de 2016” em faculdade de ciência política.

Outubro de 2018: agentes policiais interrompem aulas e retiram faixas de protesto de universidades públicas de todo o país.

Abril de 2019: ministro da Educação acusa universidades públicas de fazerem “balbúrdia”. Depois de bloquear 30% das dotações orçamentárias das universidades públicas acusadas, o ministério estende o bloqueio a todas as universidades federais.

Maio de 2019: ministro da Educação afirma que vai cortar bolsas de pesquisa com “viés ideológico”.

Maio de 2020: área de humanidades é excluída de bolsas federais de iniciação científica. 

Olhar friamente para todos esses episódios de uma vez confere sentido a uma história ainda mal contada. Na vida cotidiana, aparecem como fatos avulsos que se dissolvem na massa de informações de conjuntura. Quando agrupados, a lógica e o fio condutor da repressão à liberdade se desvelam. Apesar de “arquivo não escrever história”, esse material em “estado bruto, sem encadernação, sem capa, apenas reunido e atado com um feixe de palha”, como diz Arlette Farge em O sabor do arquivo (Edusp), é um primeiro passo para processar essa bateria de fatos. Integrá-los é fundamental para iluminar um alvo central de qualquer projeto autoritário.

Liberdade acadêmica não é só o direito individual de fazer perguntas e buscar respondê-las a partir do conhecimento acumulado por gerações de quem já perguntou e respondeu antes. Ou de demonstrar que as respostas que temos não são suficientes e assim despertar novas investigações. Não é mera liberdade individual nem uma simples variante da liberdade de expressão. 

Trata-se de uma liberdade comprometida com os cânones de uma ciência e de uma disciplina, sujeita à crítica transparente dos pares que integram cada comunidade epistêmica. É liberdade que pressupõe uma infraestrutura institucional, dentro da universidade ou de centros de pesquisa, com independência em relação aos interesses do poder político ou econômico. Esse edifício institucional precisa conferir estabilidade, proteção contra represálias e recursos de pesquisa para professores, pesquisadores e cientistas.

Temos o segundo pior índice de liberdade acadêmica na América do Sul. Só a Venezuela está abaixo

Preservar a liberdade acadêmica, como diz Robert J. Zimmer em Who’s Afraid of Academic Freedom? (Quem tem medo da liberdade acadêmica?, Columbia University Press), “é preservar a habilidade única das universidades de contribuir para a sociedade”, que emerge graças a um “fermento intelectual” continuamente alimentado.

A educação na Constituição

No Brasil, a liberdade acadêmica está ancorada na Constituição. São bases da educação a “liberdade de pensar, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e o “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas” (art. 206). Para garantirem perguntas e respostas na prática, as universidades devem dispor de “autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial” (art. 207). 

Quem está atento ao conjunto de eventos ligado ao ensino e à pesquisa no ensino superior brasileiro nos últimos anos percebe um cenário preocupante. Em 2019, o país apareceu pela primeira vez em relatório da Scholars at Risk, rede internacional que oferece proteção a acadêmicos que sofrem intimidação e perseguição política. Sua publicações anuais monitoram eventos que ameaçam a liberdade acadêmica no mundo. Ao avaliarem os acontecimentos entre 2018 e 2019 no Brasil, pesquisadores da organização incluíram um alerta sobre o país. O que mais chamou a atenção foi a combinação de cortes orçamentários com motivação política; ataques e ameaças individuais contra acadêmicos da comunidade LGBTQ+ e professores acusados de “doutrinação”; e operações policiais nas universidades por mandados da Justiça Eleitoral (veja o relatório “Free to Think”, 2019).

Outro relatório, de março de 2020, também apontou recente queda de qualidade da liberdade acadêmica no país. O estudo foi resultado da análise da Scholars at Risk em cooperação com outras três instituições de pesquisa (GPPi, FAU e V-Dem). Os pesquisadores desenvolveram um índice de liberdade acadêmica no mundo: o Brasil aparece no grupo de países com nota C na escala, que vai de A a E. Temos o segundo índice mais baixo da América do Sul. Só a Venezuela (nota D) está abaixo.

A avaliação é feita com base nas seguintes perguntas: 1) Quão livres são os acadêmicos para desenvolver suas agendas de pesquisa?; 2) Os pesquisadores podem divulgar e debater seus resultados?; 3) Há autonomia das universidades?; 4) Os campi estão sujeitos à vigilância politicamente motivada?; 5) Há espaço para diversidade de manifestações culturais? 

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Ameaças à liberdade acadêmica podem aparecer em formas mais ou menos explícitas de repressão, como demonstra estudo preliminar de uma das instituições envolvidas (Forbidden Knowledge, GPPi). Nas suas manifestações mais dramáticas, podem culminar em assassinato, tortura, expulsão, revogação de cidadania, fechamento de universidade ou aplicação de legislação antiterrorismo a acadêmicos. Em cenários mais moderados, vê-se limitação da autonomia das universidades por regulação estatal, por restrição do acesso à informação ou a diálogos acadêmicos, por propaganda, por vigilância de salas de aula, por autocensura etc. Há também restrições embutidas em cortes arbitrários de financiamento, em que critérios ideológicos para concessão de recursos vêm disfarçados por razões tecnocráticas.

Invasões à liberdade acadêmica, portanto, podem ser classificadas dentro de um extenso espectro que reúne dos atos mais violentos e gritantes até formas veladas e sutis. Nossas lentes de observação têm de ser versáteis o suficiente para enxergar a coerência entre eventos esparsos e assim dar a devida dimensão à ameaça em curso.

A Presidência de Bolsonaro

O projeto de cerco ao conhecimento científico não começou com a posse do presidente Jair Bolsonaro, mas a partir dali se intensificou, de modo notável, como política de governo. Bastam alguns exemplos recentes das falas de grandes autoridades de Estado: quando a ministra dos Direitos Humanos lamentou que a religião tenha perdido espaço nas escolas, que “acabaram ocupadas” pela ciência; quando o ministro das Relações Exteriores afirmou não acreditar em aquecimento global e denunciou a “ditadura do climatismo”; ou mesmo quando o diretor do Inpe acabou demitido por defender dados de alerta de desmatamento e acusado pelo presidente de “estar a serviço de alguma ONG”. 

Ao episódio da acusação de “balbúrdia” nas universidades seguiu-se um amplo programa de cortes de recursos. A crise econômica foi usada como justificativa sem maiores explicações sobre valores e critérios. Com o objetivo de mudar o modelo de financiamento de universidades federais, foi criado um programa de incentivo à captação de investimentos privados, batizado de Future-se. Embora se apresentasse como alternativa, a adesão ao programa era a única dada pelo governo às universidades: sujeitar a sua atividade de produção de conhecimento e tecnologia à lógica dos interesses de mercado. Estudantes foram às ruas em protesto e acabaram tachados pelo presidente de “idiotas úteis” e “massa de manobra”.

Algum tempo depois, contrariando indicadores internacionais, Bolsonaro afirmou que não havia universidade brasileira entre as 250 melhores no mundo. Poucas fariam pesquisa, segundo sua concepção descolada da realidade. Citou como exceções a esse dado fantasioso um instituto da aeronáutica, um militar e uma universidade presbiteriana (Mackenzie). Foi o ex-reitor desta última, defensor do criacionismo, o escolhido pelo presidente para presidir a Capes. 

Esse é um padrão encontrado em outras “democracias em via de autocratização” (conforme classificado pelos últimos relatórios do centro V-Dem). O aparato jurídico-institucional serve de ferramenta tanto para passar recados e intimidar quanto para restringir abertamente a liberdade acadêmica. 

As humanidades, assim como em outros momentos de corrosão democrática, têm sido o alvo preferencial

Exemplo marcante do uso de prerrogativas contra a liberdade acadêmica foi a portaria do Ministério da Educação que, às vésperas do réveillon de 2020, comunicou aos professores de universidades federais que dali em diante haveria limitações para que colegas da mesma instituição participassem do mesmo congresso acadêmico. Depois de muitos protestos de mais de sessenta organizações científicas, a portaria foi revogada. 

Outro exemplo foi a mudança realizada por Bolsonaro no método de escolha de reitores das universidades federais. Quebrou a tradição de mais de quinze anos de escolha do primeiro colocado de listas tríplices geradas por eleição, para em vez disso nomear outros indicados da lista. E ainda lamentou estar obrigado a escolher alguém da lista tríplice, a nomear “pessoas de esquerda”. No fim de 2019, depois de preterir os mais votados na maioria de suas nomeações, o presidente ignorou a autonomia universitária e editou medida provisória aumentando sua capacidade de controle sobre o processo. Alterou regras de eleição de reitores e criou a possibilidade de nomeação de reitor temporário “em caso de irregularidades verificadas no processo de consulta”.

As humanidades, assim como em outros momentos da história universal de corrosão democrática, têm sido alvo preferencial. No começo de 2019, o presidente e seu ministro da Educação anunciaram que o governo estudava “descentralizar investimento em faculdade de filosofia e sociologia (humanas)”. A justificativa era de que outras áreas gerariam “retorno imediato para o contribuinte, como em veterinária, engenharia e medicina”. No primeiro ano de mandato também prometeram cortar bolsas com “viés ideológico”.  Acabar com a “ideologia de gênero”, o “esquerdismo” e o “marxismo cultural” são alvos anunciados desde a campanha presidencial. 

O fim do Ministério da Cultura

Seguindo o padrão de repulsa à atividade intelectual, artística e cultural, o governo federal extinguiu o Ministério da Cultura e transformou a pasta numa secretaria do Ministério do Turismo. Investiu também contra a Fundação Casa de Rui Barbosa, instituição federal de pesquisa e documentação da história brasileira. Primeiro, nomeou como dirigente uma escritora sem perfil acadêmico e alinhada ao ideário bolsonarista. Seguiram-se as exonerações do diretor e chefes da área de pesquisa. E, para completar, o então secretário da Cultura anulou uma nomeação de cientista político experiente para cargo de confiança por causa de comentários contra o governo. O desmonte na Casa de Rui Barbosa era ainda pior nos bastidores: em processo que tramita em sigilo, o ministro da Cidadania elaborou proposta para acabar de vez com a pesquisa e converter a fundação em museu. 

Já em 2020, o último ato contra as ciências humanas chegou no meio da pandemia: bolsas de iniciação científica foram extintas exceto para “áreas prioritárias”. Como aponta a carta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e da Academia Brasileira de Ciências — um entre muitos manifestos que lançaram nos últimos meses —, essa política leva jovens pesquisadores a desistirem de pesquisas que não sejam avaliadas pela burocracia governamental como “prioritárias”. 

A filósofa Martha Nussbaum, em Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades (Martins Fontes, 2017), lembra que o abandono das ciências humanas nos faz perder a capacidade de avaliar fatos e de diferenciar a verdade de “estereótipos grosseiros difundidos por líderes políticos e culturais”, ou de distinguir “afirmações falsas das verdadeiras”.

Sem uma cultura de perguntas e respostas, o terreno é fértil para se impor visões e disseminar a intolerância. Perguntar e responder, ou pensar o impensado, continuamente, é indispensável para entender o mundo e agir sobre ele, indispensável para a emancipação individual e coletiva.

Entender o que já mudou no estado da liberdade acadêmica no país começa por consultar o arquivo, juntar os fatos e estimar o significado desse projeto não só para a dignidade da profissão de cientistas, professores e intelectuais em geral, mas para a liberdade, a saúde e a vida de qualquer cidadão.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Adriane Sanctis

Doutora em filosofia e teoria geral do direito, co-organizou o livro Direito global e suas alternativas metodológicas (FGV Direito SP).

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).