A cientista política alemã Ina Kerner (Wanezza Soares/Divulgação)

Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O alvo comum da extrema direita

Ina Kerner diz que discurso antifeminista e heteronormativo une forças ultraconservadoras no mundo inteiro e vê ‘debate vibrante’ no Brasil

23jan2025 • Atualizado em: 24jan2025 | Edição #90 fev

Uma viagem ao México e à América Central como mochileira no começo dos anos 90 mudaria para sempre o rumo da trajetória intelectual de Ina Kerner, cientista política e professora no departamento de estudos culturais da Universidade Koblenz, na Alemanha. “Vivi coisas que, na época, não conseguia explicar, como ser recebida e tratada extremamente bem em quase todos os lugares aonde fui, enquanto, de volta à Alemanha, migrantes estavam sendo mortos por extremistas de direita”, ela conta, em entrevista por e-mail.

Na época, tinha pouco mais de vinte anos. Voltou à Universidade Livre em Berlim e não encontrou explicações para o incômodo que sentia. Anos depois, descobriu os estudos de branquitude e pós-coloniais. Hoje, a cientista política pesquisa como o colonialismo europeu ainda influencia as sociedades contemporâneas. E é no Sul Global — conceito que abrange países em desenvolvimento fora do eixo Estados Unidos-Europa, incluindo o Brasil — que Kerner diz encontrar ferramentas úteis para entender as complexidades do mundo. 

Em 2024, passou uma temporada de pesquisa no Brasil como bolsista do Mecila (Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in Latin America), entidade dedicada aos estudos em ciências humanas e sociais financiada pelo governo alemão e instituições brasileiras, como o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e a Universidade de São Paulo.

Nesta entrevista, Kerner fala de sua passagem pelo país e conta que escolheu trabalhar com racismo por considerar o tema um problema social e político grave — e algo que deveria ser mais observado pela ciência política. Ela também discute maneiras que a extrema direita explora o discurso anti-gênero como uma força de radicalização internacional e analisa a figura política de Alice Weidel, candidata do partido neonazista Alternativa para a Alemanha (AfD) nas próximas eleições alemãs.

Sua visita ao Brasil em 2024 influenciou sua pesquisa ou perspectiva?
Minha estadia me deu a oportunidade de me familiarizar com o debate feminista muito amplo e vibrante no Brasil, assim como em outros países da América Latina. Ainda preciso descobrir como integrar isso nos meus escritos, mas comecei a explorar possibilidades ao recentemente ministrar um curso sobre feminismos decoloniais. Gostaria que já houvesse mais traduções de textos fundamentais para o alemão. Fui a várias feiras de livros acadêmicos e comprei muitos livros, apesar do meu português precário. Fiquei impressionada com a quantidade de títulos sobre questões afro-brasileiras e empoderamento negro, incluindo séries inteiras de livros infantis. Também notei que novas edições sobre feminismo negro brasileiro receberam críticas muito positivas na Folha de S. Paulo.

Seu trabalho abrange várias universidades fora da Europa, particularmente em áreas descritas como o Sul Global. O que inspirou seu foco nessas regiões?
Quando eu tinha pouco mais de vinte anos, tive a oportunidade de passar vários meses como mochileira no México e na América Central. Vivi coisas que, na época, não conseguia explicar, como ser recebida e tratada extremamente bem em quase todos os lugares aonde fui, enquanto, de volta à Alemanha, migrantes estavam sendo mortos por extremistas de direita. Quando voltei e continuei meus estudos no departamento de política da Universidade Livre em Berlim, busquei explicações, mas não encontrei, mesmo estando no maior departamento de política do país.

‘Pesquisas em ciências sociais dificilmente são neutras e, portanto, não devem fingir ser’

Alguns anos depois, nos Estados Unidos, descobri os estudos críticos de branquitude e pós-coloniais. Eles me ajudaram a explicar minhas experiências anteriores, questões relacionadas ao privilégio branco ou europeu, eurocentrismo, formas discursivas de poder. Escrevi minha tese sobre um tema nessa área: usei teorias feministas pós-coloniais para criticar a abordagem de gênero e desenvolvimento. Assim, voltar a lugares no Sul Global parecia quase natural, além de muito útil para entender melhor algumas complexidades deste mundo.

Você usa estudos pós-coloniais, gênero e raça como ferramentas analíticas na ciência política. Qual a importância desse referencial teórico?
Gênero foi algo autobiográfico e começou enquanto eu ainda era estudante. Senti a necessidade de entender e criticar o androcentrismo e o machismo que me cercavam. Algumas coisas eram sutis — como quase não ter professoras ou autoras nas listas de leitura. Comecei a trabalhar com racismo porque é um problema social e político grave. E acho importante usar o termo normativo “racismo” em estudos críticos sobre o tema, algo que, a propósito, deveria ser mais feito na ciência política. 

Não defendo o uso de “raça” como ferramenta analítica por duas razões. Primeiro, o racismo não necessariamente precisa de diferenciações codificadas como raciais, ele pode e funciona com outras formas de diferenciação, como as étnicas ou religiosas. Em segundo lugar, “raça” não é uma categoria neutra ou inocente. Pelo menos na academia europeia do século 18, as categorizações e sistemas de classificação racial raramente foram produzidos sem hierarquizar claramente os grupos de pessoas. Portanto, “raça” como categoria tem um histórico decididamente racista. 

Ilustração de Veridiana Scarpelli

Às vezes, no entanto, precisamos dessas categorias, por exemplo, para fins de ações afirmativas ou anti–discriminação. Mas quando nas ciências sociais ou políticas nossa tarefa é abordar, estudar ou teorizar o racismo criticamente, acredito que devemos chamar o problema pelo nome. Como o termo “racismo” é normativo e problematiza aquilo a que ele se refere, há quem acredite que não é científico. Não acho que devemos ceder a isso. Pesquisas em ciências sociais dificilmente são neutras e, portanto, não devem fingir ser.

Como as dinâmicas de gênero e radicalização se manifestam nos cenários políticos contemporâneos?
Eu não faço pesquisa empírica, mas me interesso pelos aspectos políticos de gênero e religião. Isso inclui questões como o catolicismo ainda restringir o sacerdócio aos homens. Ou observar como movimentos e partidos de direita se conectam com forças religiosas de direita e fundamentalistas. Isso ocorre no Brasil, mas também em muitos países das Américas, Europa e do mundo inteiro. Eles se conectam internacionalmente. 

Os atores de direita são, na maioria das vezes, nacionalistas, então esse internacionalismo não é algo natural para eles. Nesse ponto, o gênero, ou melhor, o antigênero entra como uma força conectiva. Eszter Kováts e Maari Põim cunharam a expressão “gênero como cola simbólica” nesse contexto. Um dos pontos de encontro internacional é o Congresso Mundial das Famílias. Forças de direita, seculares ou religiosas, parecem facilmente concordar em promover uma política de gênero tradicional, heteronormativa e antifeminista.

Estudos apontam uma divisão de gênero na polarização política em diversos países, mostrando homens com tendências autoritárias e mulheres com inclinações progressistas. Você concorda com essa análise ou vê como uma simplificação de desafios da democracia liberal?
Não conheço os números e interpretações para todos os países, e não trabalho no campo da pesquisa eleitoral. Mas se olharmos, por exemplo, para as estatísticas alemãs das últimas eleições para o Parlamento Europeu, que ocorreram em junho de 2024, o partido AfD obteve 12% dos votos femininos e 19% dos masculinos. O partido de esquerda recebeu 3% dos votos femininos e 2% dos masculinos. Também houve mais mulheres do que homens que votaram nos verdes e nos sociais-democratas.

‘No discurso de Alice Weidel, homens muçulmanos são perigosos para as mulheres e homofóbicos’

As questões parecem ser um pouco mais complicadas do que apenas um problema relacionado aos homens. Mulheres também apoiam políticas conservadoras — incluindo modelos tradicionais de família. Existem, porém, estudos interessantes sobre populismo de direita e masculinidade. Birgit Sauer, uma colega cientista política baseada em Viena, mostra como atores políticos de direita na Áustria e na Alemanha trabalham com imagens de uma masculinidade branca em crise — devido, entre outros fatores, às políticas de gênero. Eles oferecem a restauração da masculinidade. Isso anda de mãos dadas com a promoção de modelos tradicionais de família heterossexual.

Alice Weidel, candidata do partido neonazista AfD nas eleições alemãs, é uma mulher lésbica, casada com uma imigrante e neta de um juiz da era nazista. Até que ponto esses elementos de sua identidade moldam sua persona política? 
A história familiar e a vida privada de Weidel não são questões muito abordadas publicamente na Alemanha, assim como no caso de outros políticos. O que ela faz, no entanto, é recorrer à sua feminilidade, bem como ao fato de ser lésbica, para argumentar contra a imigração. O AfD e outros atores de direita na Alemanha definem a imigração, particularmente de pessoas vindas de países muçulmanos, como uma ameaça à população alemã. É quase uma materialização exemplar do discurso orientalista analisado pelo [acadêmico e ativista palestino] Edward Said. No discurso do AfD e de Weidel, homens muçulmanos são vistos como perigosos para as mulheres e homofóbicos. Os objetivos anti-imigração do AfD podem, nesse contexto, ser apresentados como pró-mulheres e pró-LGBTQIA+.

Recentemente, Mark Zuckerberg anunciou que a Meta está “eliminando várias restrições sobre temas como imigração, identidade de gênero e gênero”, frequentemente objetos de debates e discursos políticos. Como acha que essa mudança deve impactar a Europa?
Essa mudança facilita a disseminação de desinformação intencional, e isso não é o propósito da liberdade de expressão. Na União Europeia existe a Lei dos Serviços Digitais, que proíbe materiais prejudiciais para crianças e para a democracia. Na Europa, a Meta pode ter que continuar verificando os conteúdos, ou garantir, de outras formas, que materiais prejudiciais não apareçam em sua plataforma. Mesmo assim, há muitas razões para preocupação, especialmente porque a empresa não parece que vai se limitar a eliminar a verificação de fatos. 

Poucos dias após o anúncio, Zuckerberg também anunciou o fim do seu programa de diversidade. Várias outras empresas, como Walmart e Ford, já fizeram o mesmo. Esses programas têm sido muito criticados pela esquerda, entre outras coisas, por alegarem que defendem a igualdade apenas enquanto isso faz sentido economicamente — porque uma imagem corporativa diversa vende bem —, mas não são baseados em um compromisso com mudanças sustentáveis. A história parece provar que essa crítica está certa, infelizmente.

Poderia recomendar livros, podcasts, filmes ou séries que possam ajudar nossos leitores a aprofundarem seu entendimento sobre as áreas de pesquisa que você aborda?
Um romance sobre a escravidão que me impressionou muito é The Known World, de Edward P. Jones. Outro que também não consigo tirar da cabeça é Ségou: Les murailles de terre, de Maryse Condé, que aborda como primeiro o Islã e, depois, os europeus chegaram à África Ocidental, e quais foram as implicações disso — e tem uma parte ambientada no Brasil. Um livro sobre estudos pós-coloniais na Alemanha que gostei muito é Identitti, de Mitu Sanyal. Um ensaio cinematográfico impressionante sobre o colonialismo europeu é a minissérie de Raoul Peck, Extermine todos os brutos [disponível no Brasil no Max]. Ah, e sobre masculinidade tóxica e violência contra mulheres, gostei do romance Mulheres empilhadas, de Patricia Melo.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Gabriela Sá Pessoa

Jornalista, é repórter da The Associated Press.

Matéria publicada na edição impressa #90 fev em fevereiro de 2025.