Fichamento,

Anna Muylaert

A diretora fala sobre os contos de juventude que acaba de publicar em livro e dá spoilers sobre o seu próximo filme

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Roteirista e diretora de filmes como Durval Discos (2002), Que horas ela volta? (2015) e Mãe só há uma (2016), premiada em festivais como os de Berlim e Sundance, Anna Muylaert fala de Quando o sangue sobe à cabeça (Lote 42), reunião de contos escritos há mais de vinte anos em que aborda temas ligados ao corpo feminino — orgasmo, parto, menstruação. Ela também dá pistas sobre seu novo longa, (re)pensado a partir da atuação de mulheres chefes de Estado na pandemia.

O que faz o seu sangue subir à cabeça?
Hipocrisia: quando a pessoa tenta te convencer de uma mentira que ela sabe que é mentira.   

No prefácio, você diz que a eleição de Collor representou um atraso de dez anos na carreira para a sua geração. Quais serão as consequências do governo Bolsonaro para a geração atual de cineastas?
Vivemos uma paralisia semelhante, mas o mundo está completamente diferente. Além dos canais de streaming, independentes das políticas do Estado, todos têm um celular — ou seja, um modo de produzir. Os jovens não serão obrigados a parar, como a minha geração foi.  

Mães dominadoras e trabalhadoras domésticas, duas constantes em sua obra, são figuras que vêm de sua experiência pessoal?
Com certeza. São figuras centrais para mim. Embora minha mãe não fosse exatamente dominadora, o modo de lidar com criancas aqui é impregnado de uma romantização e um desrespeito intrínseco que vivi e geraram problemas com os quais lido até hoje. A criança de classe alta no Brasil é adorada depois que a empregada lhe deu banho: as mães negam o trabalho braçal. Isso gera distância e baixa autoestima em todos os envolvidos: a mãe que não carrega seu proprio peso, a empregada afastada de sua casa e de seus próprios filhos e a criança que se vê como um estorvo. Sempre tive empregada em casa e isso sempre me incomodou. Não entendia por que aquela pessoa estava ali mas não podia aparecer na foto. Acho essa questão crucial para entender os desequilíbrios sociais e morais do Brasil. 

Seus filmes pensam a mulher a partir de um contexto político; já os contos parecem fazê-lo a partir do corpo.
Totalmente. Escrevi-os logo após ter me tornado mãe e estava totalmente encantada com o sagrado do útero, do leite do peito e da capacidade imensa de amar que nem sabia que tinha. Foi um período mágico para mim.

O que simboliza a arte na capa do livro? 
Justamente a tessitura do corpo. Hoje vivemos mais as imagens do corpo do que o próprio corpo. O corpo não cabe na internet…

Quão autobiográfico é o relato de parto do livro? 
Cem por cento [risos].  

Como foi a experiência de reencontro com a Anna de vinte anos atrás, quando os contos foram escritos? 
Foi bem maluca. Sempre entendi esses contos como fetos para meus filmes. Ao ler, senti orgulho do meu esforço em pesquisar minhas narrativas através das palavras antes de transformá-las (ou não) em filmes. Muita coisa mudou, mas minha intenção de escrever para tirar a cortina da realidade e ir além das aparências permanece.

Pode nos contar algo inédito sobre seu próximo filme? 
Ninguém sabe nada sobre ele. Eu mesma sei pouco, já que resolvi mudar tudo a partir da pandemia e da mudança que senti na relação de gênero. Todas as líderes femininas foram responsáveis na forma de lidar com o vírus, e muitos líderes masculinos vêm protagonizando cenas grotescas de ignorância, em uma espécie de surto surreal. Então meu novo filme vai ter algo de teatro do absurdo. Chama-se O clube das mulheres de negócios.

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.