Música,

Bacharéis da canção

Adriana Calcanhotto dá curso de composição popular na universidade e participa de escavação arqueológica em aldeia romana em Portugal

30abr2019 | Edição #22 mai.2019

São cinco da tarde. É primavera. Os lódãos da rua do Tomar já estão floridos. Adriana Calcanhotto deixa o Hotel Casa de São Bento, a caminho da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Leva uma sacola com notebook e material para mais uma aula do curso Como Escrever Canções.

“Inventei o método na hora, gosto de coisas arriscadas, trabalhar ao acaso”, explica, rindo. “Separei a turma em quatro grupos de parcerias. Dei essas três palavras (‘aqui’, ‘sonho’, ‘você’ e uma cor, à escolha) e pedi que cada uma dessas parcerias me desse mais quatro. Reparei que tinha muitas palavras em comum. Sublinhei as mais citadas e lancei o desafio: agora vocês vão trabalhar numa letra com essas palavras, sem usar nenhuma palavra de ligação… Ah… Mas como é que vai fazer sentido? Não é para fazer sentido ainda, calma. Depois eu libero as palavras de ligação…” Ri mais ainda ao lembrar que, no intervalo, um aluno comentou: “Esse seu método de composição é meio dadaísta, não é?”.

É a terceira temporada de Adriana em Coimbra. A relação começou em março de 2015, quando fez o show de aniversário de 725 anos da universidade. A conselho da professora de literatura Cleonice Berardinelli, procurou José Augusto Cardoso Bernardes, especialista em Camões e diretor das bibliotecas da universidade. Grudou nele. Foram dois dias percorrendo livros, prateleiras, tesouros, afrescos e histórias da Biblioteca Joanina e seus morcegos-guardiões (duas colônias de bichos que comem os bichos que comem os livros). Ao final, não resistiu. Confessou a Bernardes: “Daria tudo para passar uma temporada aqui, estudando. Seria o máximo”. Seis meses depois, veio o convite para se tornar embaixadora da universidade. 

“É uma universidade de livros, o fundador é dom Dinis, que é um trovador, um rei-poeta.” Para celebrar, ela montou, com o compositor Arthur Nestrovski, um recital de canções, das mais antigas do idioma “até chegar a Carmen Miranda, Tom Jobim.”

Os alunos vão chegando. São uns vinte, portugueses e brasileiros de todas as origens, profissões e idades. João Rosa é um jovem da vizinha Tomar. Não larga o violão e diz que está aqui para aprender, “com uma compositora deste nível, um pouco da fórmula, da magia, de como as pessoas fazem canções”. Já Mário Jorge Ferreira, economista aposentado, só agora descobriu esse prazer: “Até me dá vontade de chegar a casa e fazer coisas”.

Mas como a poeta, compositora e cantora virou professora? “Em fins de 2016, eles me fizeram o convite para 2017. Tomei um susto. Apesar de vir de uma família de professores, nunca tinha pensado nisso. Ao contrário, abandonei o colégio para fazer música.” Mas aceitou. Podia escolher os temas, desde que a primeira aula, assim veio a encomenda, fosse sobre sua própria trajetória.

Deu mais duas aulas sobre trovadores: uma sobre os medievais, outra sobre os contemporâneos, citando Bob Dylan como exemplo. Falou ainda sobre os livros que marcaram a vida dela. O parangolé Pamplona, de Hélio Oiticica, também foi tema de uma master class. Um parangolé feito pela própria Adriana, com bilhetes, fitas, medalhas e emblemas transformou a clássica capa preta dos estudantes de Coimbra e ornamenta o gabinete dela, ao lado de duas guitarras elétricas, uma flâmula da Acadêmica (time de futebol da cidade) e livros. Muitos livros.

Adriana começou a pesquisar o papel de Coimbra na história do Brasil. “José Bonifácio circulou por aqui, Gonçalves Dias… Os inconfidentes, menos Tiradentes, que era pobre. Mas o Cláudio Manuel da Costa estudou aqui. Tomás Antônio Gonzaga. Começou aí um pensamento do Brasil que até então não existia. A Universidade de Coimbra em relação ao Brasil não é Portugal em relação ao Brasil. Tem uma coisa muito específica, muito interessante. O laboratório de geologia aqui da universidade, por exemplo, foi feito para o José Bonifácio.”

Leis

Na aula de hoje, a terceira de 2019, a professora pergunta: “Quais são as leis que regem a escrita das canções? São as leis do universo… Ação, reação…”.

Ana Teresa Peixinho, diretora da faculdade de letras, confessa que, sendo Adriana uma cantora e poeta muito acarinhada nos dois lados do Atlântico, era óbvio o seu enquadramento na faculdade de letras, a mais antiga das oito de Coimbra. “E ela é a mais brasileira das universidades de fora do Brasil. Três mil brasileiros estudam aqui.”

Adriana acarinha de volta: “O objetivo aqui, de toda a universidade, é a transmissão do conhecimento. Os professores aqui falam de seus assuntos num nível de paixão que não é possível que você não se apaixone também. É um brilho no olho… Uma coisa”.

Os olhos verdes dessa gaúcha de 54 anos também brilham quando ela fala do trabalho. “Eu não sabia dessa experiência maravilhosa que é ter uma turma, entender quem é quem. Ver as pessoas desabrochando, o quanto têm ali guardado, contido, disperso. Tive uma aluna engenheira que sonhava com a música. Aprendeu piano, cantava no coral, fez curso de composição, mas não conseguia compor. Ao longo do curso, começou a escrever e a inscrever a escrita dela em concursos de poesia. Ganhou um, ficou em segundo lugar em outro. Está outra pessoa. Eu disse pra ela: tudo isso estava aí dentro, você não tirou de fora, não estava no curso. Estava aí. É uma coisa incrível. Nossa! Me sinto útil.” 

A aluna é Catarina Cañas, engenheira de Coimbra que, animada, decidiu repetir o curso. Tem lá seus quarenta anos, e o que mais lhe chamava a atenção na música era a melodia, depois a voz de quem cantava e, por último, a letra. “O curso da Adriana fez-me uma transformação. A partir daí comecei a perceber que era ‘‘giríssimo’ fazer a letra, brincar com as palavras.” 

Adriana ensina métrica, estrutura, fala de introdução, versos, estrofes, pré-refrão e refrão, chama atenção para os contrastes numa canção. Pode ser agudo ou grave, na altura; forte ou fraco, na dinâmica; rápido ou lento, no andamento; maior ou menor, no modo; pouco marcado ou muito acentuado no ritmo. E vai buscar as origens lá na Grécia Antiga.

“Era uma música que hoje achamos chata, monocórdia. Não tinha melodia nem harmonia. Era uma lira e uma flauta. Funcionava para reproduzir os fonemas, era transmissão oral. Depois passa pelos trovadores. Eles ficavam meia hora só tocando, agrupavam as pessoas interessadas, ouvindo música de coração aberto. Só então cantavam as canções, davam os poemas.”

Para ela, todo esse movimento deságua no Brasil de forma original: a transmissão de altíssima poesia pela música popular. E puxa a discussão: o que é superior? O poema no livro ou a letra da canção? A resposta vem em forma de conselho: “Não percam o tempo de suas curtas vidas, isso é um problema para os poetas de livro. Nunca mais se produziram poemas magníficos como os da Grécia. E esses poemas eram poemas de canção”.

É inevitável. Todos se lembram da polêmica do Nobel dado ao bardo Bob Dylan. Adriana entra na discussão: “Uma letra de Dylan equivale a vários livros de poesia”. Explica que escrever versos não é fazer poesia. “Existem no mundo milhões de livros de poesia onde não há poesia alguma.” 

E mais: fazer poesia tem a ver com roubar. “Roubar — no sentido de se inspirar em alguma coisa já criada — é imprescindível, todo criador faz. Roubar é necessário. Não é diluir, a cópia diluída não é nada, é plágio. Todo mundo que fez alguma coisa que preste roubou.”

Arqueologia

Para Ana Teresa Peixinho, Adriana “rasga horizontes a professores e estudantes” e vive intensamente a universidade, dissertando sobre os cantares galegos-portugueses, a literatura para a infância, a composição, a poesia brasileira. “Para não falar já da sua paixão pelo mundo romano da Antiguidade, alimentado pela participação num projeto arqueológico coordenado pelo professor Pedro Carvalho, em Idanha-a-Velha”.

Idanha-a-Velha fica na zona central de Portugal. Lá, a universidade desenvolve pesquisas arqueológicas — a aldeia onde hoje moram cinquenta velhinhos nasceu como acampamento romano, depois foi ocupada pelos Templários. Adriana se apaixonou pelo projeto. E começou a participar das escavações. “Quando eu estou escavando e consigo — consegui! — um caco de cerâmica romana, eu penso: meu Deus do céu! Um dia, lá atrás, um arquiteto romano teve de estudar essa terra, saber por onde a água entrava, por onde saía, para executar um projeto. Um projeto de saneamento! Quando puxo esse caco de Roma, fico pensando no Brasil. Meu Deus, a gente não tem essa noção!” 

A aula segue e Adriana ensina dois princípios: “O primeiro mandamento para escrever canções é: tenham uma vida! E quanto mais se puder dizer com menos, melhor. Poesia é síntese.”

Ela volta ao Brasil em julho, para lançar um novo álbum, o terceiro da Trilogia Marítima. E tem um projeto mais ambicioso: “Registrar canções antigas, com as quais já tenho alguma intimidade. Canções medievais”. Tudo por ter descoberto um livro com fragmentos de uma anotação grega musical. “Achava que não havia. E havia! Assim é possível chegar nem que seja a um trechinho de um hino délfico. Uma coisa assim.”

E o fado? Já entrou ou vai entrar na vida dessa porto-alegrense? “Não. Mas quanto mais me aprofundo, mais eu fico inteiramente fascinada pelo fado. Tem uma coisa próxima ao blues. Se, dentro da métrica, outro poema cabe naquela melodia, você pode tocar. Isso faz com que o fado seja uma música transmissora de alta poesia. Quem fez muito isso foi Amália Rodrigues. Ela chegou a botar Camões no fado.”

‘O primeiro mandamento para escrever canções é: tenham uma vida!’ 

Está na hora. Os alunos vão apresentar os trabalhos. Adriana, com o mesmo jeito doce, tranquilo, suave e elegante com que fala, canta e compõe, chama os representantes das quatro parcerias formadas na sala. Um deles é um cearense tímido que gosta de cordel e faz doutorado em Governança, Conhecimento e Inovação. “Não tem muito a ver com a música, não, né?… Mas é o que me sustenta, a poesia, o lado bom da vida. É quando a gente consegue sorrir. Lá no meu doutoramento não consigo sorrir muito, não.” Francisco José Alves de Castro escreve no quadro-negro o que seu grupo produziu: “Agora sozinho/ Nós, um sonho impossível/ Esse espaço no chão violeta/ Meu sol, sozinho, você…”, e por aí vai.

E explica: “Esse espaço no chão violeta é um fenômeno parecido com a aurora boreal. Mas é uma forma diferente. Se chama Steve, uma sigla. O céu fica todo violeta. É assim… O chão do sol é o céu”. A professora, rápida, ouvido afiado, percebe poesia na frase e escreve: “O chão do sol é o céu”. 

As letras foram musicadas na aula seguinte. Peixinho, a diretora, se entusiasma: “A faculdade transformou-se. Ouvíamos o som do piano, vindo do piso 3; a flauta num outro recanto; a viola, a voz… Foi surpreendente… Parecia que o edifício ganhava uma nova vida, feita de sons experimentais”.

Francisco também ganhou vida nova depois do que ouviu da professora. “O chão do sol é o céu… Você disse isso, essa frase linda! Talvez, um dia, eu a use numa canção, talvez um dia a gente faça uma parceria…”

Por que não? Estamos em Coimbra.

“Qual seria a probabilidade de um rapazito como eu, que saí do Ceará, ter aula com Adriana? Isso no Brasil nunca aconteceria.”  

Quem escreveu esse texto

Eugenia Moreyra

Jornalista, foi diretora geral da GloboNews de 2013 a 2017, quando se aposentou. Hoje vive em Lisboa.

Matéria publicada na edição impressa #22 mai.2019 em abril de 2019.