Infantojuvenil, Literatura,
O alquimista
Qualidades intrínsecas ao romance explicam a permanência do sucesso da saga Harry Potter em mais de vinte anos
13nov2018 | Edição #6 out.2017Em torno de J.K. Rowling movem-se milhões de fãs. A escritora britânica de 52 anos criou um dos maiores casos de sucesso do mundo do entretenimento. Pode-se olhar suas criações com tédio highbrow e jogá-las no limbo dos fenômenos burros e derivativos da cultura de massa, ou invocar certa solenidade nerd para classificar a autora como uma copiadora infantilizada de J.R. Tolkien. Nos dois casos, estará se perdendo o que, na já longa história que começa com um confuso e abandonado garoto se descobrindo feiticeiro e uma escritora desesperada para vender um manuscrito, faz do universo potteriano algo a se olhar com atenção e generosidade.
Em 1997, quando Harry Potter e a pedra filosofal foi publicado na Inglaterra, ninguém supunha que aquele livro magro, parecido com muitos outros na seção infantojuvenil das livrarias, iria se tornar um fenômeno. Quando pais, críticos e jornalistas se aperceberam, a obra já era febre entre as crianças inglesas e estava prestes a cruzar o Atlântico. Revistas eletrônicas como a Salon e a Slate se perguntavam o que estava acontecendo com aquele livro que passava de mão em mão antes mesmo de ser publicado em “versão norte-americana”.
Um dos segredos estava no poder disseminador de tendências da internet do final dos anos 90. Apesar das previsões catastróficas sobre a morte da escrita, a rede, há apenas três anos acessível fora das universidades e quartéis, estava se constituindo como um meio de comunicação que fez reflorescer atividades antes sufocadas pelo império da TV. As velocidades baixas dos modens favoreciam a troca de dados na forma de e-mails, chats, pesquisas e fóruns, e tudo isso envolvia leitura e escrita, e potencializava o bom e velho boca a boca.
Antes que o primeiro filme chegasse aos cinemas, em 2001, portanto, os três títulos (já estavam em circulação também A câmara secreta e O prisioneiro de Azkaban), já traduzidos em dezenas de línguas, devolveram livros em papel e sem figuras para um lugar de honra entre crianças, adolescentes e jovens adultos ao redor do mundo. Nada disso, entretanto, faria um best-seller tomar a proporção que acabou tomando. O aniversário de publicação de 20 anos do primeiro livro reviveu a febre: a exposição Harry Potter: A History of Magic, na British Library, em Londres, abre dia 20 de outubro, mas na data de fechamento desta edição, em setembro, já estava com os ingressos para os finais de semana esgotados até 16 de dezembro.
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Acontece que, uma vez que se abre um de seus livros, por curiosidade ou obrigação profissional, encontra-se ali uma história incrível, engraçada e encantadora. Rowling recombina, de maneira inovadora, três grandes tradições da literatura juvenil.
Em primeiro lugar, a da criança quase adolescente que cresce ou se vê num ambiente livre dos pais. Um cenário de construção de identidade(s) autônomo e independente, no qual tem de se deparar com adultos menos acolhedores, mas que podem tomar o papel de mentores de um crescimento intelectual e emocional mais amplo. Muitas vezes, esse ambiente é uma escola e, não raro, a criança é órfã — e, sem pais vivos, pode empreender a jornada do herói. É o caso de Harry, “o menino que sobreviveu”, que ingressa em Hogwarts sem sequer saber exatamente quem eram (e como morreram) seus pais.
O segundo traço distintivo é a liberdade com que a autora lida com a riquíssima imaginação fantástica inglesa. Uma vez que se aceita que existe, em paralelo com a realidade, um universo habitado por bruxas que são capazes de se transformar em gatos e feiticeiros que podem fazer o tempo voltar atrás, a quantidade de seres que passam a se mover nesse mundo mágico não tem limite. Rowling não apenas usa o que tem à mão — fantasmas, anões, elfos, trolls, gigantes etc. — como cria novas entidades — os tétricos dementadores, por exemplo — ao sabor de sua capacidade de fabulação quase selvagem. O terceiro e mais importante elemento é o fato de que, mesmo com o protagonismo evidente de Harry, os sete volumes também contam uma história de amizade. Talvez tenha sido essa a grande sacada de Rowling, capaz de fazer o crossover entre diversos públicos.
Harry, dos dez aos dezessete anos, se descobre herói, o maior bruxo jovem, famoso e peça central de uma luta de vida e morte com seu antagonista, aquele-cujo-nome-nem-se-deve-pronunciar. Mas, ao longo de sete anos, ele também aprende a ser amigo de Ronny Weasley e Hermione Granger. Ronny, o melhor amigo, menos talentoso em tudo, vem de uma família de muitos irmãos, que “adota”, protege e acolhe Harry. Hermione, ao contrário, é também solitária, e uma menina brilhante, livresca, furiosamente cerebral e excelente aluna. Sim, tudo parte de um clichê — o cara, seu melhor amigo engraçado e a menina CDF —, mas, ao longo dos mais de dez anos em que foram publicados os livros (o último foi em dezembro de 2006), os personagens foram, de alguma forma, se descolando do clichê.
Harry, o predestinado, atormenta-se, deprime-se e sofre no papel de herói. Ronny, mais mundano, tem de se haver com a inveja, a competição e as paixões enlouquecidas e meio estúpidas da adolescência. Hermione emerge como uma grande personagem feminina juvenil, com sua sensibilidade ultrainteligente e sua coragem subversiva, e torna-se, também, heroína, mas do conhecimento. Em todos os momentos em que é preciso uma saída heterodoxa, ali está ela com a solução subversiva. Por fim, Rowling escreve num híbrido da fluidez narrativa da literatura de aventura e mistério com momentos de pura diversão. Ela não hesita em se deter mais do que deveria numa cena que está lá simplesmente porque é uma ideia engraçada, ou a descrever um objeto mágico (e há dezenas). Por vezes, faz um tortuoso desvio quase lírico para se dedicar à construção de um personagem, humano ou não.
A chamada literatura infantojuvenil é escrutinada severamente por cenhos franzidos sobre sua qualidade, pertinência pedagógica, capacidade de criar hábito de leitura etc. Rowling, é claro, apesar de ter se tornado uma popstar do mundo do entretenimento, não ficou imune a esses muxoxos. Teve seus livros execrados tanto por religiosos paranoicos como acadêmicos seríssimos, e não deixou de levar cacetadas de nerds inconformados. Ela fala pouco, mas, quando fala, defende sua criação com a paixão de quem, há vinte anos, consegue fazer gente do mundo inteiro abrir um livro e ler com alegria. E é nisso que reside, de verdade e sem truques, seu encantamento.
Especial Infantojuvenil: oferecimento Itaú Social
Matéria publicada na edição impressa #6 out.2017 em junho de 2018.
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